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A ilustração do cartaz é da autoria de Rachel Caiano, distinguida com menção honrosa no Prémio Nacional de Ilustração 2024. |
O desafio para este mês é livre, um pequeno texto, com menos de 20 linhas. sobre o que quiserem, seja um livro que vos tenha marcado, um pequeno conto de vossa autoria, um pensamento (que pode vir acompanhado de uma foto tirada por vós); o início de um livro que planeiam escrever (ou já escreveram, mas ainda não publicaram)...
Neste dia, em prosa, celebraremos a palavra escrita como forma de comunicação, de expressão de sentimentos, de companhia, de forma de viajar (pela memória, por exemplo), etc.
Como habitualmente, por ser Abril, se alguém se sentir particularmente inclinado a escrever sobre o 25 de Abril e/ou a liberdade (ou liberdades), também o pôde fazer.
Lembramos que até ao dia 15 de Maio teremos uma votação a decorrer para encontrar o poema favorito dos leitores.
Como habitualmente, as votações serão feitas usando a caixa de comentários (já sabem que tem moderação pelo que os comentários/votos não ficam visíveis de imediato), não há limite para o número de vezes que podem votar ou em quem votar, apenas se espera algum bom senso (e apesar de aceitarmos que no blogue as votações ficam anónimas, só validaremos os votos após recebermos por email a identificação do votante e forma de contacto, assim que lhe atribuirmos um número).
O autor do texto mais votado escolherá do nosso catálogo de Prosa um exemplar do livro que mais lhe agradar; e o mesmo sucederá com o comentário/voto sorteado de entre os votantes identificados.
E chegou ao fim mais uma votação(?). Tivemos 4 votos e só dois foram validados... Contudo, houve unanimidade nesses dois votos e o texto vencedor (com toda a certeza apreciado por muitas mais pessoas) é o "Confidências", da Maria João Amaral Graça. À autora, os nossos parabéns!
Quanto ao votante, recorremos ao número de sonho do Eurodreams de 15 de Maio, o número 2, pelo que o votante premiado é o votante nº 2. Também para ele os nossos parabéns.
Muito em breve vão poder escolher um livro do nosso catálogo de prosa.
Aos autores resta agradecer mais uma participação e dizer-lhes que apesar dos votos não o mostrarem, os textos foram lidos por imensa gente.
(6)
Abril primaveril (pensamentos)
Março de 74 anunciava novos
ventos:
Marcelo exclamou - “E eis que
chegou a primavera”. “Começou com a PIDE e os dias cinzentos”.
Mas algures um militar dizia
- “Mas o sol virá quando menos se espera”.
Ao que outro mais letrado
replicou – “Quer faça sol ou um belo luar. A brisa soprará funcionando como
defumo. Inebriando uma nova perspectiva no olhar; despoletando a intuição a
indicar o novo rumo.”.
Outro mais erudito respondeu
“Seja no oceano ou num rio a correr. Que a primavera traga coragem para
ultrapassar os obstáculos que nos prendem de crescer.”.
Que a liberdade de Abril nos
faça sonhar
Com a fórmula de não vivermos
acorrentados
Mas sem nunca nos levar ao
próximo desrespeitar
E a nos podermos exprimir mas
sendo moderados.
Aníbal
Seraphim
(5)
dona miquinhas do senhor samuel
é necessário frisar que estou
a escrever sobre a dona miquinhas do senhor samuel.
porque mesmo abaixo da sua
casa existia a miquinhas dos alhos. a casa dela. claro. o senhor samuel era
raro vê-lo em casa. saía de manhã para o trabalho. quando voltava já era de
noite. tinham uma filha casada. com um senhor da judiciária. a dona miquinhas do
senhor samuel uma vez por semana ia a casa dela. e era aí que nós
aproveitávamos. nós a rapaziada. no seu quintal havia ao fundo a retrete. como
era normal. mas também um coberto. na frente deste uma figueira. ora bem. o
interesse pelo quintal da dona miquinhas eram os figos. da figueira. na casa
dela era um amontoado de móveis. uma grande mesa. nunca usada. em cima da parede
um lindo relógio de pêndulo. para dizer mal. quase que não se podia passar para
o quarto. este tinha uma cortina a separar a sala. onde estava a mesa grande.
do lado esquerdo. quem entra. era uma cozinha. e no meio. entre a cozinha e o
quarto ficavam os degraus. uma escada que dava para um quarto em cima. a casa
estava bem equipada.
mas não era disto que queria
falar. perdi-me. era dos figos. quando era altura deles. do quintal da
miquinhas dos alhos. que nunca estava em casa. passávamos para os figos. e seja
dito. limpávamos os figos maduros. mas a nossa alegria era quando chegava a
dona miquinhas do senhor samuel. não via figos. protestava. nós de nada
sabíamos. eramos muito mentirosos. então ia de casa em casa. e fazia queixa aos
vizinhos. era uma alegria para nós. e ainda é. passados tantos anos.
joaquim armindo
dia do livro de
2025
(4)
o senhor cândido
o senhor cândido morava na
quarta casa do meu bairro. porque aquilo não era uma ilha. mas um bairro. de
pobres. ou remediados. como se dizia. então. lembro-me muito bem. uma casa e um
pombal no quintal. porque cada casa tinha um quintal. ainda que a retrete fosse
no fundo do quintal. mas era. para se fazer xixi era num bacio. que se
despejava na retrete. não havia chuveiro. mas existiam bacias. onde se tomava
banho. estou já a desviar a conversa. vamos lá. o senhor cândido vivia com a
esposa. quatro filhos. uma era filha. os filhos o telmo. viria a ser presbítero
da igreja lusitana. porque todos íamos ao torne. ou quase todos. à escola
primária e à igreja. aliás o bairro pertencia à igreja. e ainda pertence. mas o
telmo já tinha mais idade que eu. era dos grandes. ainda andei com ele num
curso de teologia. foram uns cinco anos. depois havia o nélson. este já da minha
idade. jogávamos à bola. na rua. claro. há muito tempo que não o encontro. encontrava-o
nas manifestações. ele era de esquerda. e depois o tono. muito mais novo. não
me lembro do nome da filha. nem da esposa. o telmo casou. veio residir na maia.
com a isabel. ainda falo com ela de vez em quando.
mas o mais importante de tudo
era o pombal. pombas muitas. concorriam a concursos. lembro os assobios do
senhor cândido. os assobios era para chamar as pombas. depois ficava registado
numa máquina os tempos que demoravam. na corrida. quem vencesse tinha um
prémio. não sei o que era. mas era uma vida curiosa. que agora não vejo. nem tenho
de ver. era o nosso bairro. que não era uma ilha. com o senhor cândido e as
suas pombas.
joaquim
armindo
dia do livro de
2025
(3)
Acasos
Acho que há acasos que podem
salvar-nos a vida. Os cinco minutos de atraso que evitam que passemos num
determinado local. O momento em que nos apercebemos de que nos esquecemos de
algo em casa e voltamos atrás. Ou quando nos enganamos e seguimos por outro caminho.
E, ao fazermos tudo isto, escapamos a um acidente. É verdade que o contrário
também pode acontecer, mas eu, que sou optimista, prefiro pensar positivamente.
23h. Alameda das Linhas de
Torres. Sou professora. Terminei as aulas. Despedi-me da turma.
Entro no carro. Saio. Não há
trânsito. O semáforo está verde. Vou a ouvir rádio. O meu filho ia estar fora. “Dá-me
um toque quando chegares. Eu não atendo, um toque apenas para saber que chegaste
bem”; - tinha-lhe pedido, receosa da viagem demorada que ele iria efectuar.
Aproximo-me do cruzamento. O telemóvel toca. Abrando instintivamente, como se
isso me permitisse ouvir melhor.
Às 23h o meu filho decidiu
ligar-me. Às 23h reduzi a velocidade. E, ao fazê-lo, evitei, por centímetros, o
carro que passou o sinal vermelho, a alta velocidade, no cruzamento.
Às vezes pergunto-me...
Lígia Dantas
Abril 2025
(2)
Felicidade
Contei sete crianças e dois
adultos ainda jovens (segundo o meu conceito de juventude). Ao meu lado na
praia, montaram guarda-sol e abrigos de vento, pousaram geleiras e mochilas,
espalharam toalhas. Pensei tratar-se de um casal com filhos e sobrinhos, ou
amiguinhos dos filhos. Percebi que não. Eram sete filhos. Fiquei fascinada com
a alegre algazarra. Imaginei a logística: as camas a fazer de lavado, as
compras no supermercado. Pensei nas brincadeiras, nos risos antes de dormir,
nas conversas cruzadas à mesa.
Mais à frente, uma senhora
sozinha, com um fato de banho azul escuro e um chapéu largo, lia tranquilamente
um livro que interrompia de quando em vez para olhar o mar.
Um pai e um filho louro
saltavam sobre as ondas, divertidos. O pai passava a mão pelo cabelo do menino,
despenteando-o. Davam abraços apertados. Não sei se eram sempre só os dois ou
apenas naquele momento. Não sei se ao final do dia se separariam e aguardariam
pelo próximo encontro, com o coração a transbordar de saudade. Fosse como
fosse, era evidente o amor que os unia.
Quase de saída, reparei num
casal de mais idade, a lutar com uma tenda igual à minha - daquelas que nos
garantem serem fáceis de desmontar. Percebi que ele dizia graças de que ela se
ria com gosto, que se olhavam por cima do tecido impermeável da tenda que teimava
em não fechar. Recordei-me de tê-los visto de mão dada, à beira-mar. Não faço ideia
se estariam juntos há muitos anos, mas, muitos ou poucos, pareciam bons.
Pensei o que penso muitas
vezes. Que a felicidade pode ser muitas coisas.
Lígia Dantas
Abril 2025
(1) Confidências
Após quinze anos afastada da casa materna,
Raquel viajou
de Londres até Lisboa, para rever a mãe,
mas ao contrário de
beijos e abraços calorosos, encontrou uma
moradia vazia e
sombria, desprovida de calor humano. No
quarto da falecida,
entre o espólio de memórias perdidas pelos
móveis,
descobriu a fotografia de uma jovem com o
rosto semelhante
ao seu, e que tinha algo escrito atrás:
“G rande é o meu tesouro
E
xtraordinária bênção de Deus
M
uito mais precioso que o ouro
E
ao qual tive de dizer adeus
A
maldiçoada foi a minha sorte
S
entirei amargura até ao dia da minha morte.
Rute, espero que me possas perdoar, um dia,
e que a vida
encontre forma de aproximar o que o destino
quis separar. As
minhas filhas gémeas, Rute e Raquel”.
Um segredo revelado num poema comovente,
cujas palavras
desconcertantes produziram em si um
sentimento diferente.
Regressara com a intenção de reconquistar o
amor da mãe, e
partia com a certeza de que na sua vida
existia mais alguém.
Maria João
Amaral Graça