sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Maria Saraiva de Menezes em entrevista


Continuamos as nossas entrevistas, agora com Maria Saraiva de Menezes, 47 anos. Esta licenciada em Filosofia coordena o ser esposa, mãe de 3 filhos e professora com uma forte actividade literária. Tem publicado em vários géneros e já com diversos prémios. Em Junho de 2018 passou ao papel (e também ao eBook) o seu projecto de 3 anos nas Redes Sociais onde todos os dias publicou um conto. As 1095 histórias publicadas têm múltiplas influências a começar, sem dúvida pelos locais e culturas que autora foi experienciando, do Porto onde nasceu, ao Minho onde viveu na infância e adolescência, aos anos que viveu em Macau e Lisboa onde vive desde 1991.
É sobre “História numa Garrafa” que nos fala, não deixando de referir o modo como os livros são trabalhados mesmo depois de já estarem publicados, bem como o modo como a leitura e a escrita se articulam na sua vida.

     Conte-nos como e porquê começou a escrever, por paixão ou por necessidade?
Aconteceu naturalmente, como quem descobre o caminho para a vida. Em criança, procurava livros e lia poesia, logo, acto contínuo, dava por mim a compor poemas. Encontrava nos livros a magia que não encontrava na vida. Ler era uma forma legitimada de sonhar. Um livro aberto era uma promessa de aventura. Hoje, ler e escrever são actos complementares na senda pela descoberta e o bem-estar emocional.

     Qual o papel que a escrita ocupa na sua vida?
O escritor Mia Couto diz que, em criança, pensava que tornar-se escritor era algo que acontecia, naturalmente, quando nos tornávamos adultos. É um pouco isso, mas sobretudo, um traço que releva da minha personalidade. Escrever é o que me acontece quando estou atenta ao mundo e também ao meu mundo interior. Como diz Miguel Esteves Cardoso, ‘preciso de pôr a vida por escrito.’ É assim, de certo modo, que o mundo se torna compreensível e organizado. Para mim, é também algo mais do que a simples organização e harmonia; é a partir de onde ensaio o absurdo, a loucura ou a lucidez, onde escrevo na primeira pessoa para sentir as dores da personagem e assim experienciar uma catarse; mas também onde escrevo na terceira pessoa para me afastar de dores muito próprias e memórias. Dar as nossas más memórias a personagens fictícias é uma forma de nos livrarmos delas. Escrever é poder tudo, ir a todo lado, ser muita gente de diversas formas, e também aquela coisa de ‘ser escandalosamente feliz’ porque escrever liberta-nos e dá-nos um presente que não sabíamos que tínhamos dentro de nós. É uma viagem permanente. Por isso, Fernando Pessoa dizia algo como não precisar de viajar, pois pela escrita fazia todas as viagens possíveis.

     Sempre sonhou publicar um livro?
É uma consequência de escrever. Publiquei 17 títulos dentre poesia, ficção, etiqueta, pedagogia e infanto-juvenis e participei com contos para adultos e crianças em livros colectivos, assim como em jornais e revistas literárias. Ter os livros publicados permite-me chegar às pessoas, fazer leituras públicas, entrevistas na rádio e na televisão (onde o maior interesse são, curiosamente, o meus livros de Etiqueta para adultos e para crianças), além de palestras em escolas, ateliês de etiqueta, sessões de poesia e horas do conto com sessões de autógrafos e momentos especiais com os leitores. Realizo a HORA DO CONTO em escolas e bibliotecas, com as minhas histórias infantis; sobretudo ‘leituras encenadas com fantoches’. Três dos meus contos infantis foram encenados e representados no Teatro Nacional D. Maria II e no Teatro Bocage.

Qual é a sensação que tem ao ver, agora, o seu livro nas mãos?
O livro impresso (termo genérico que inclui também os eBooks) faz parte do resultado do processo de escrita mas, de vez em quando, sou agradavelmente surpreendida com algumas distinções, que resultam em publicação como, por exemplo, o 1º Prémio Literário AICL Açorianidade 2013, com o livro «CHAPÉU DE CHUVA TRANSPARENTE, Crónica de um Amor sem Limites», entre outros pequenos prémios literários. Mas a publicação da ‘História numa Garrafa’ foi a cereja no topo do bolo. Começou por ser uma comunidade literária, com o mesmo nome, e há muito que os seguidores da página me perguntavam quando haveria livro impresso. O livro celebra a reunião das histórias para além do meio virtual. A Tecto de Nuvens fez um trabalho editorial irrepreensível, em que as histórias foram retocadas e levadas à exigência da perfeição absoluta, tal a qualidade profissional da revisão, onde não existe uma gralha nem uma falha; mas também devido à utilização de papéis ecológicos e de qualidade certificada (ISO). Por fim, a concepção gráfica da capa correspondeu totalmente ao solicitado e as badanas emolduram um livro sólido de 660 páginas. A melhor sensação de ter um livro na mão é poder passá-lo para outras mãos. 

     Fale-nos um pouco sobre o seu livro.
A "História numa Garrafa" começou por ser um ‘livro vivo’ numa página de Facebook onde publiquei uma história por dia, ao longo de três anos. Começou com o desafio, que coloquei a mim mesma, de escrever todos os dias sobre vários temas. Tinha por objectivo que cada história fosse tão pequena que não deixasse de ser lida; tão pequena quanto uma mensagem numa garrafa. E assim nasceu o título. A disciplina que tal tarefa me exigiu levou-me a um patamar onde fiquei mais desperta para as várias realidades, interiores e exteriores. Tornei-me permeável ao real. Deixei-me impressionar por tudo que me entrava pelo ‘poro’ da escrita. Entrei numa espécie de jogo vital em que valia tudo menos falhar a publicação diária. Por vezes, escrevia várias histórias por dia; outras, passava dias sem o fazer, mas a verdade é que, contas feitas, a história do dia era sempre auto-publicada à meia-noite, com fotografia de minha autoria. Esta disciplina potenciou mais do que um efeito de permanente desbloqueio; basicamente lançou-me num êxtase literário. Tudo o que se perfilava diante dos meus olhos passava pelo crivo emocional e resultava em ‘história engarrafada’. Penso que só consegui chegar tão além, isto é, 3 anos a escrever e a publicar uma história por dia, porque os meus queridos leitores me entusiasmaram e incentivaram. Publiquei a primeira história a 3/3/2015 e a última a 3/3/2018, com imensa pena de ter de parar por ali algo que me deu tanto. Nessa altura, contava com mais de 22.000 leitores e 1.095 histórias. Mas senti que era a hora de parar e reformular o processo. Tive, digamos assim, de meter areia na engrenagem, de tão oleada que estava. O que vivi nesses três anos corresponde mesmo ao ideário que todos temos de uma garrafa, lançada ao mar, com uma mensagem (ou uma história); ou seja, eu escrevia-a na solidão da minha costa, introduzia-a num veículo de vidro transparente que eram, afinal, as redes sociais, e depois, esperava que chegasse às mãos do leitor, aguardando ser salva, quer dizer, lida. Para o escritor, ser lido funciona como uma redenção, mas escrever, isso sim, é a sua verdadeira salvação. 

     Existe alguma parte do livro, em particular, que goste mais. Porquê?
As histórias são todas radicalmente diferentes entre si, e de certo modo, foi esse exercício diário que me motivou para a escrita, isto é, ser capaz de escrever uma história totalmente diferente da do dia anterior. Assim, à segunda-feira, eu era uma mulher apaixonada, à terça, um adolescente desesperado, à quarta, uma pedra com questões de angústia existencial, à quinta, um psicopata homicida, à sexta uma doce avozinha perita em croché e bolos caseiros e por fim, ao sábado e ao domingo, um Deus arrogante e maldisposto, uma mãe destrambelhada, dedicada ou aluada. Esta versatilidade das personagens foi o meu maior desafio.
Contudo, sem eu ter premeditado, a história da Mariana (“Mariana não sabe que morrerá esta tarde...” (página 41), por alguma razão que desconheço, tornou-se altamente viral e gerou muita comoção na página da ‘História numa Garrafa’. Publicada a 4 de Maio 2015, levou a página aos píncaros da actividade. Em Maio de 2018, a história contava com 23.000 gostos, 21.701 partilhas e 1.600 comentários. Foi ao encontro da dor de uns, da filosofia de outros e das certezas de tantos. De tal forma que tive de escrever, dias mais tarde, a continuação da história da Mariana, no céu ou semelhante dimensão, pois muitos me exigiram saber se estava bem, outros me pediram que ela voltasse, que lhe desse outra oportunidade. Esta história é a verdadeira marca da Garrafa.

     Indique as razões pelas quais aconselharia as pessoas a ler o seu livro. O que acha mais apelativo no seu livro?
Contrariando o que dizem as editoras em geral, os livros de contos vendem e continuam a publicar-se. Num país onde há iliteracia funcional, o que não se lê são romances de 600 páginas, embora se publiquem. Ler este livro de contos rápidos, humorados, potentes, bruscamente divertidos e até alguns tristes, talvez seja, com a modéstia que me é devida, uma experiência indispensável, no transporte a caminho do trabalho, à hora do café, do almoço ou num domingo despreocupado. A ‘História numa Garrafa’ tem 660 páginas mas pode ser lida de trás para a frente e do fim para o princípio. O livro em papel pode estar sempre ao seu lado ou oferecido a quem aprecia, enquanto que as histórias de que mais gosta podem ser partilhadas com os amigos no Facebook e Instagram. Ao longo dos três anos em que a Garrafa foi um livro vivo’, o feedback dos leitores foi incrível. Perguntavam-me como é que eu podia escrever histórias que eram a história da vida deles; como podia sentir o que eles tinham sentido na infância, no casamento ou no divórcio. O contacto com os meus leitores emocionou-me muito e deu-me a responsabilidade de manter esse compromisso que era a nossa comunidade literária. Pediam-me para escrever mais e davam-me as suas histórias de vida para eu escrever. Eu própria fui à procura de mais histórias e escrevi vidas que de reais passaram a ficção, como a daquela irmã que deu o rim ao irmão; da menina internada em oncologia; do coração que salvou o Salvador; do rapaz acrobata que voou de casa dos pais e ainda tantas que nasciam de tudo o que acontecia à minha volta. São 1.095 histórias de 1 minuto e meio cada, quase o tempo de um suspiro.

Tem algum projecto a ser desenvolvido, actualmente? Pensa publicar mais algum livro? Continua a sentir vontade de escrever?
Escrevo para existir.A escrita é o entendimento da vida. Depois de publicar a ‘História numa Garrafa’ tenho mais dois livros/projectos em curso. Assim que a ‘História numa Garrafa’ se tornou livro em papel, nasceu novo ‘livro vivo’ nas redes, intitulado ‘História num copo d’água’. Ao contrário do primeiro, onde as publicações foram diárias durante 3 anos, a ‘História num copo d’água’ tem publicações semanais, ao domingo. Tenho também um livro de crónicas na calha. Além disso, vou sempre escrevendo livros infantis.

  Qual é o seu estilo de escrita ou que tipo de mensagem gosta de passar no que escreve?
Sou, fundamentalmente, uma escritora emocional. Gosto de ir ao âmago dos sentimentos e transformá-los em histórias. Não gosto de passar mensagens políticas, moralistas, religiosas ou clubistas. A literatura serve-me para desconstruir conceitos e apresentar o ser humano na sua máxima fragilidade emocional; ou também o seu inverso, mostrá-lo na sua dureza extrema. Retiro das histórias as ilações que se podem retirar das parábolas, pelo sentido que nos dão para além das palavras. Por isso, uso por vezes a via do absurdo, forma subliminar de ler mais profundamente o que vai na alma da personagem. Mas mais do que o absurdo ou o ‘non sense’ sirvo-me da realidade crua para escrever histórias. Esta é, por si só, suficientemente avassaladora e transformadora de consciências. Só a realidade pode suplantar a ficção.

     Qual o papel das redes sociais na vida e na divulgação da obra de um autor? E na sua?
Devido à sua função extremamente interactiva, as redes sociais são um excelente veículo para divulgar as mais diversas actividades. Está tudo dito quando afirmei que a ‘História numa Garrafa’ começou por ser um ‘livro vivo’ nas redes sociais e graças aos actuais 23.000 seguidores tornou-se num livro de papel, algo que pode agora perdurar no tempo de forma física, e ser passado de mão em mão. Foram as redes sociais que me deram os meus leitores. Nunca chegaria a eles sem estas plataformas, nomeadamente nunca teria as muitas encomendas que me fazem do livro, hoje, para a Suíça, França, Luxemburgo, Bélgica, Reino Unido e Alemanha. São os nossos portugueses a seguir, em linha, o que se escreve em português. Pela mão das redes sociais, a História numa Garrafa foi ao 'Literatura Aqui', na RTP2, programa 11, temporada 2, a 22/11/2016: http://www.rtp.pt/play/p2798/e260627/literatura-aqui e à Antena 3, ao programa 'Donas da Casa', com Ana Galvão, a 10/3/2017 e ainda, à Casa Raphael Baldaya, em Lisboa, onde se apresentou ao público numa leitura de histórias pela autora, a 3/3/2018 e 18/5/2018. A ideia, agora, é levar as histórias da Garrafa a um programa de rádio e também lê-las ao vivo. Ao contrário do Reino Unido, não temos muito o hábito das leituras públicas feitas pelo autor, mas é algo que considero muito especial e pretendo dinamizar. 

     Gosta de ler? Que tipo de leitor é que é?
Gosto muito de ler. Quando a leitura consegue arrebatar-me, sinto-me anestesiada. É quase um estado místico. Esse é o melhor estado em que posso estar. Uma vez, cheguei mesmo a fazer uma cirurgia em ambulatório, sem anestesia, a ler um livro do José Luís Peixoto. A médica achou peculiar e eu só dizia, “por favor, não me interrompa”. Estava em êxtase, sob efeito da ‘tal anestesia’. Leio contos, romances e poesia, fundamentalmente. Na poesia, destaco, desde a adolescência, Herberto Helder, Fernando Pessoa ortónimo e heterónimo, Maria Teresa Horta, Sophia de Mello Breyner, Ruy Belo, Ary dos Santos, David Mourão-Ferreira e outros textos poéticos que nos dêem o sentido da vida, como o ‘Tao Te King’, ‘A epopeia de Gilgamesh’, os ‘Upanishads’ ou ‘Hermes Trismegisto’. Gosto de romances mas que não sejam nem de ficção científica, nem muito históricos, nem políticos ou demasiado biográficos. Que tipo de romance, então? Algo semelhante a estes que me transportaram para a tal dimensão de arrebatamento: ‘Cem Anos de Solidão’, ‘O Deus das Pequenas Coisas’, ‘Cisnes Selvagens’, ‘Kafka à Beira-Mar’, ‘A Sombra do Vento’, ‘Casa dos Espíritos’, ‘Siddartha’, que é como quem diz, Gabriel García Márquez, Arundhati Roy, Jung Chang, Haruki Murakami, Isabel Allende, Carlos Zafón, Herman Hesse e também Kafka, Camus, e em tempos da faculdade, Platão e os pré-socráticos, Pascal, Kierkegaard, Schopenhauer, Nietzsche e Dostoievsky e ainda o teatro de Beckett, Pirandello, Tennessee Williams, Strindberg e Ibsen ou o cinema de Woody Allen, Claude Lelouch, Tim Burton e Wes Anderson, só para citar alguns que levaram a literatura ao palco e à tela. Não esquecer os escritores portugueses da minha geração que têm trazido obras de qualidade à literatura portuguesa e que se têm evidenciado através dos vários prémios literários que conhecemos.


História numa Garrafa – Maria Saraiva de Menezes
660 páginas, capa mole; Tecto de Nuvens, 2018 
PVP 25,00€

Ebook:
Epub: PVP 15,00€
PDF: 7,50€





O livro está à venda na nossa loja online e em todas as principais lojas online nacionais e internacionais.
Para aqueles que preferem um contacto mais directo com os autores, podem solicitar o livro autografado à autora, com desconto de 10% e oferta de portes de envio: mariademenezes@gmail.com.  Ou a partir da presença da autora nas redes sociais (que pode sempre visitar mesmo que já tenha o livro):

Sem comentários:

Enviar um comentário