terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

"Memórias de Natal" - texto favorito do público

 



Está terminada mais uma muito empatada, e atipicamente pouco participada, votação, muito obrigada a quem fez o esforço de votar.

O texto vencedor é "Não saiba a tua mão esquerda".
À autora, Ana Ferreira da Silva, os nossos parabéns, em breve receberá o seu prémio.
As nossas felicitações também aos autores que se classificaram a seguir.

1º Não saiba a tua mão esquerda  VENCEDOR


2º O Natal memorável de Leonor (Cynthia Leite da Silva)

Encanto de Natal (Alexandra Carneiro) e O Melhor Natal de Sempre (Agostinho Vieira)


Leia, ou releia, um excerto do texto vencedor: 

Não saiba a tua Mão Esquerda 

“… Não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita” (Mateus, 6: 3)

  

Éramos crianças de aldeia; não de uma daquelas aldeias minúsculas semeadas pelo interior, de casinhas caiadas ou de grossas paredes de granito e telhados de xisto, rodeadas de campos lavrados, searas ou vinhas, onde a vida converge para a igreja e o cemitério, mas sim de uma pequena povoação plantada a um quilómetro do mar, que tendo sido alvo de interesses estrangeiros, se desenvolveu, lutadora e assimétrica, firme na sua aspiração a ser elevada a vila. 
Nessa povoação tão assimétrica, cuja entrada é ainda hoje assinalada por duas imponentes colunas de pedra encimadas de esferas, coexistiam vivendas resguardadas das vistas por belos jardins cercados de muros e grades – como a da família de um antigo presidente da República e a do esculápio da aldeia, posteriormente homenageado pela toponímia local – e “vilas” de operários, de mistura com prédios baixos de apartamentos, onde vivia a maioria da classe média local, incluindo a minha família. Na periferia havia um colégio de rapazes; no coração da aldeia, ao lado do quartel dos bombeiros, espraiava-se a escola primária, e em frente do caminho-de-ferro uma moradia de três andares albergava um orfanato, cujas pensionistas frequentavam comigo a escola, esse pequeno mundo utópico onde cada um valia pelo que era, e não pela sua origem.
Numa pequena povoação onde as pessoas se conheciam e se cumprimentavam todos os dias, e os miúdos brincavam sem cuidados no meio da rua ou no largo do mercado ou da igreja, a escola primária da aldeia não era mais do que o prolongamento natural do nosso convívio infantil; e os nossos coleguinhas reflectiam as assimetrias da sociedade, sem que tal interferisse com a formação e fortalecimento de amizades. 
Eu teria sete anos, e tal como o meu irmão, uma sólida reputação de boa aluna. Conhecia todos, todos me conheciam, dávamo-nos bem, nas aulas como no recreio. Então, no Natal desse ano, aprendi uma lição.   
Sem iluminações a piscar nas ruas nem canções festivas pairando no ar, o Natal na aldeia era, não obstante, uma quadra por que todos, grandes e pequenos, ansiávamos. Em nossa casa entrava, logo no primeiro sábado ou domingo de Dezembro, um dos mais bonitos pinheiros do mercado, que enfiávamos num grande vaso cheio de areia da praia, e cuja decoração nos ocupava uma tarde inteira. Recordo o Pai sentado no chão a consertar as grinaldas de luzes espanholas, enquanto eu e o meu irmão escolhíamos velhos brinquedos de casquinha religiosamente guardados numa caixa de cartão e a Mãe preparava o jantar, e o gira-discos “mono” enchia a casa de cançõezinhas amorosas com sininhos a pontuar coros infantis muito certinhos.
Ao longo da semana seguinte, empoleirada numa cadeira, eu haveria de aproveitar todos os bocadinhos livres para construir um formidável presépio num dos aparadores da sala, instalando o estábulo no canto mais próximo da árvore e o meu castelinho medieval de cartão prensado no extremo oposto – já que, para o efeito, se tratava do castelo dos Reis Magos, e estes tradicionalmente vinham de muito longe, e teriam de atravessar um rio cintilante de papel de alumínio montados nos seus pachorrentos camelos; o resto do presépio – suaves colinas de areia salpicadas de musgo artificial, casinhas, estábulos, oficinas, lagos, palmeiras, fontes, poço, artesãos, pastores, ovelhas, galinhas, porcos, patos, burros – era distribuído a esmo de acordo com a minha inspiração de cada ano; e eu haveria de entreter-me horas a fio com as personagens da minha modesta obra-prima até aos últimos dias de Janeiro, quando o Natal seria oficialmente “desmontado”, o pinheiro despido dos seus brilhos e luzes, e os brinquedos arrumados nos caixotes respectivos, a descansar até ao Dezembro seguinte. (...)

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