Terminadas as votações (que têm quase número igual de votos validados e de votos por validar - é só mais um pequeno esforço enviar um email com os dados que "José Joaquim" ou "Maria Silva" por si só não nos dizem nada) já temos um texto vencedor.
Acredito que a escolha não tivesse sido fácil pois eram todos muito bons, mas o texto que recolheu o maior número de votos foi o texto 11: "Memórias à Deriva" de Sofia D'Almeida Oliveira. À autora, estreante absoluta nestes Desafios, os nossos parabéns!
Aos restantes autores os nossos agradecimentos, contamos convosco já no próximo Desafio, dedicado à Criança.
A todos os votantes que se identificaram, ficam também os nossos agradecimentos, Desta vez resolvemos colocar no nosso saco dos sorteios todo os números válidos. Depois de muito agitar a sorte saiu ao votante número 22 (identificado via email). Muitos parabéns!
Muito em breve serão enviados os exemplares de capa dura aos vencedores.
(1) SER MAR
O mar é uma presença constante, desejada, libertadora, apaziguadora e baú de histórias e segredos de toda a minha vida. Por tal, ponderei muito escrever sobre o tema e o que partilhar – foi um trabalho que durou 2 anos de rascunhos, papéis rasgados, introspecção, silêncios e sorrisos que partilho.
A maturidade oferece-nos a experiência de vivermos de forma mais quântica – este será um livro em que pouco é ficcionado sendo quase na totalidade, constituído por crónicas de vida real.
A exposição escrita de um ou mais eventos de sequência temporal.
Porque escrever e partilhar me faz, também, feliz. Estas, serão, as crónicas vivenciadas possíveis.
Assim começa o Conto Odisseias de Eça de Queiroz, nascido a 25 de novembro de 1845, na Póvoa do Varzim: “Sentado numa rocha, na ilha de Ogígia, com a barba enterrada entre as mãos, donde desaparecera a aspereza calosa e tisnada das armas e dos remos, Ulisses, o mais subtil dos homens, considerava, numa escura e pesada tristeza, o mar muito azul que, mansa e harmoniosamente, rolava sobre a areia muito branca. Uma túnica bordada de flores escarlates cobria, em pregas moles, o seu corpo poderoso, que engordara. Nas correias das sandálias, que lhe calçavam os pés amaciados e perfumados de essências, reluziam esmeraldas do Egipto. E o seu bastão era um maravilhoso galho de coral, rematado em pinha de pérolas….”
Introdução a novo Livro de Bastos Vianna
(2) O PORQUEIRO DA CAPELINHA
Conheci o compadre Elísio nas minhas férias de verão, durante uma visita sua aos meus pais, para acasalar o seu porco com a nossa porca. Já o Sol se esgueirava no horizonte, quando o vi entrar pelo portão da quinta da Capelinha, numa barulhenta moto sidecar. “Viva!”, cumprimentou ele, enquanto tirava o capacete da cabeça do animal sentado no assento ao lado. “Coitado!”, disse eu, mas o homem explicou que preferia um porco estressado a uma multa da polícia. Dirigimo-nos, então, até ao curral, onde se consagraria o ato sexual. Porém, o que nós não sabíamos é que ele costumava abusar de uma simplicidade linguística, que chegava a ser deselegante.
“Dá-lhe com força, Januário”, gritou o compadre, eufórico. Imediatamente olhei para a mãe (que sempre teve horror a pessoas sem polimento nos modos), cuja palidez transparecia um desconforto brutal, face ao manifesto ordinário. Mas o melhor ainda estava para vir. Uma vez que os chicos se estavam a dar bem, nada mais tínhamos a fazer ali, mas o homem insistiu em ficar. O seu comportamento tão estranho impeliu-me a perguntar se se considerava porqueiro, pois se guardava porcos e não uma porta, tinha de ser porqueiro, em vez de porteiro, ao que ele respondeu, com um sorriso mordaz : “Gosto de ver”. Prevendo que a mãe se preparava para citar Michele Cúrcio no seu Manual de Etiqueta (livro que andava a ler, na altura), o pai puxou-nos dali para fora, libertando a gargalhada que mantinha presa desde o momento em que o viu chegar. Com um sorriso, de orelha a orelha, olhou para nós e disse: “Fogo! Entre o porco e o senhor Elísio, venha Santo Antão e escolha”.
Maria João Amaral Graça
(3) QUE FUTURO?
Num futuro que não se assemelha, nem se parece auspicioso, somos quase que muitas vezes, como que forasteiros, num mundo que não reconhecemos, e que parece não ser o nosso.
Assim os a tormentos de vida, e a sua conquista por novos ou velhos ideais, desmancha tudo aquilo que vem de nós, e que está ao nosso alcance, que só nos basta, tão somente tocar…
A vida e o sonho! Num mundo que preenchemos de colorido, e que não pode ser mesmo de outra forma, ou modo.
O Fado. A Saudade, e uma vida à espera do seu sabor.
Porque se todo o mar tivesse sangue português, este meu trecho, teria parte dele, na paz que parte à revelia, do voo de uma simples gaivota.
Num mundo em que o amor dança como dançam os peixes do mar, partindo à revelia, de palavras que ecoam como gritos de salvação. Em vozes, que expressam o grito da alma de um povo, que sonha, embrenhadas no ímpeto de um caminho, que se segue: a caminhar.
Com o jugo de Deus, tão presente, que o ouvir desta mensagem, nos faz pairar… parando nos portos de alma!
Lúcida como uma voz que rasga o silêncio. Num sábio discorrer, que leva a palavra a um discreto cair de noite, e a um breve amanhecer. Porque a alvorada aí vem!
E, com ela gritos de liberdade ecoarão, como que oriundos de rochas eternas, jamais silenciadas. Assim é o provincial povo português, em sua demanda pela vida, em busca de novos horizontes… e valores… No ganha pão que lhe é contumaz. Na luta pela vida!
Timóteo Pernas
(4) Confidências ao amanhecer
Ternos amantes de Haifa, tereis construído vosso ninho depois que vos deixei? Viverá ainda a árvore do vosso belo jardim? Viverão ainda passarinhos amando-se ao crepúsculo, quando no mundo os homens desistirem de matar?
Ana Ferreira da Silva
(5) O NOSSO 25 DE ABRIL
Meu querer esvoaça por entre ramos de árvore, espavorida vontade.
Tu peneiras hesitação e cautela em maceira carunchada de orgulho, levamos a vida assim. A poda corta os ramos, os rebentos rejuvenescem.
Uma alegria fura cinza ditada a preconceito, o levedado cai ao chão.
A madrugada levanta-se, a rajada entrega recado ao vento. Acompanha-me!
Toda inteira me atiro, alma a transbordar, espargir um só sinal de união, minhas asas batem, meu voo plaina trespassa o fogo da exclusão tombada.
Sim tenho asas, a manif é passo seguro ergo a voz vontade do povo.
Tu acanhaste, cultivas a distância do espelho, és em observação.
Pernoito sozinha em teu pudor, aguento firme a sensaboria que tu me dás, ao esquentar da luta abro a janela ao nosso amor, tu acolhes-me em silêncio, a afoiteza de minha vontade aguçasse, pico-te, levo-te p'rá multidão.
Os píncaros da tua cautela arreiam, abres-me a porta, és assim intacto, na alegria comum acompanhas-me, um vento frio é o teu alento.
O ar bate-me de frente a tua energia dá-me a mão, és apoio seguro.
Arrelio-te, entregar-me; nunca me entrego, tu sabes nunca digo nunca.
Dobra-se a esquina, o sonho paira informe, nossa vida tem de continuar.
Recolho-me em meu trabalho, contigo danço a solidão que continua a fazer e faz. Nascem netos, netas, outra revolução mareja em ternuras de Abril nosso mês, nosso pedaço em luta, nosso abraço, nosso quinhão de esperança.
Manuel José
(6) LIBERDADE, LIBERDADE...
Recordo-me de uma velha canção que rezava qualquer coisa como isto: “Liberdade, liberdade, quem na tem chama-lhe sua; eu não tenho liberdade, nem de por o pé na rua...”
No outro dia, seguindo a rotina dos dias livres, fui ao mini-mercado do bairro comprar pão, e deparei com o espectáculo triste de uma pomba a esvoaçar entre a vitrina e os carrinhos de compras: debatia-se e chocava com o vidro, continuava a debater-se e a chocar com o vidro...
Desviei os carrinhos , mas não resolvi o problema, porque o pobre bicho se chegou para o lado e desatou a esvoaçar entre a pilha de cestos de compras e a vitrina, insistindo na tragicomédia de se debater e chocar com o vidro, com uma insistência crescente e confrangedora.
O rapaz da caixa veio desviar os cestos; mas quando julgávamos que a pomba iria evadir-se porta fora, eis que a desditosa resolve enfiar-se pela loja, indo colidir a alta velocidade com um espelho a meio da casa.
Estonteada, deu meia volta, mas não conseguiu atinar com a saída, e foi chocar, com grande estrépito, na vitrina contra a qual tão bravamente se debatera! Desta vez desmaiou. Desmaiou e caiu dentro de um cesto. Olhei para o rapaz da caixa, como eu aliviado por ver fim à saga da pomba. O moço pegou então no cesto e despejou-o para a rua. Instantaneamente recuperada, a pomba fugiu “a sete asas” e foi à sua vidinha.
E eu fiquei-me a pensar como é, por vezes, penoso e cheio de escolhos o caminho da liberdade...
Ana Ferreira da Silva
(7) Liberdade
Chamam de liberdade às escolhas que fazemos. Mas é mais do que isso, não?
Liberdade feminina, liberdade de expressão, liberdade de abril, liberdade de libertação. Liberdade de pensamento, mas, nem sempre, de se agir!
Liberdade subjetiva. Liberdade, a fingir.
A liberdade é um bem tão apreciado que, por vezes, até criticamos a alheia. Defendida com discursos e atacada de mão cheia!
A liberdade é um direito, mas nem sempre é assim… A liberdade tem sempre um preço e um limite, por fim!
A maior liberdade é ser-se livre na nossa própria mente… quem disser o contrário, é porque mente.
Melissa de Aveiro
(8) num comboio de abril
em vinte e vinte e um de abril. se não me engano no dia. do ano de setenta e quatro claro. chegava de comboio a Portugal. vinha do estrangeiro. já tinha acabado a tropa. estive naquilo que se chamavam províncias ultramarinas. é verdade. pertencia a um movimento clandestino dentro da tropa. vinha carregado de papeis. a polícia vasculhou todo o comboio. saí do compartimento. mas a polícia nada encontrou. ainda bem. sabia que existiam movimentações de alguns militares. mas não prestei atenção. no estrangeiro existiam muitos movimentos para a libertação. e liberdade em Portugal. foi com algum espanto que recebi a nova do vinte e cinco de abril. já tinha distribuído a documentação. foi com o zé manel. mais conhecido por testinhas. não sei porquê. foi o fernando que me deu a nova. e depois a quininha. tinha ouvido na rádio. o meu destino foi o Porto. Na avenida dos aliados já estava muita gente. muitos estudantes. vi o pedro a gritar liberdade. e arremessou pedras contra o consulado da áfrica do sul. fomos em manifestação até à sede da polícia política. que era chamada direção geral de segurança. gritamos liberdade para os presos políticos. uma rajada de metralhadora atirou-nos para o chão. deveria ser da legião. ou da guarda nacional republicana. as esquadras da psp estavam encerradas. até que os presos vieram à varanda. estavam livres. foi o delírio. tínhamos vencido o combate. e foi o meu comboio de abril. que me trouxe em condições de estar no dia mais festivo. que já tive. hoje festejo-o. com muito amor. até porque seria preso antes do dia um de maio. e não fui.
joaquim armindo
20/4/2024
(9) As folhas da vida em 4 estações
Depois de terem passado uma temporada da vida a ter a sua utilidade, a deliciar a vista a quem dá as boas novas à PRIMAVERA e de fazerem sombra na copa das árvores para servir quem da sua sombra precisou para suportar o calor do VERÃO, eis que chegou o OUTONO, tal qual o outono da vida, em que a sua utilidade se vai perdendo e vão caindo por terra. E com o implacável general INVERNO sucumbem pisadas e maltratadas aos pés de quem um dia delas precisou.
Aníbal Seraphim
(10) nunca esquecer bispo Luís Pereira
quem pensa em vinte e cinco de abril não esquece quem lutou por ele. se existem muitos cristãos na primeira linha. um deles. tantas vezes esquecido. conveniências. Luís Pereira era médico. em vila franca de xira. o médico dos pobres. mas também foi bispo. da igreja lusitana. e responsável pela sua adesão à comunhão anglicana. a sua casa foi invadida pela polícia política. um dos seus filhos permaneceu algum tempo nos calabouços dessa polícia. o bispo que apoiou sempre os jovens do torne. este grupo pertencia à igreja lusitana do torne. em gaia. mas tinha jovens de todas as confissões. e ateus também. aquando do meu segundo interrogatório pela polícia. e das suas idas a casa dos meus pais. o bispo deu inteiro apoio. e telefonicamente disse ir intervir junto da embaixada inglesa. nunca teve vergonha dos jovens da sua igreja. e sabia que era o evangelho que os guiava. apoiou sempre. obreiro do vinte e cinco de abril. esquecer este bispo e a sua luta nunca poderemos. nem o bilhete que marcelo caetano lhe enviou o fez demover. pedia desculpa pela prisão de seu filho. classificou-o como uma atitude de velhacaria. parece que está voltado ao abandono. na sua terra ninguém o esquece. uma estátua sua está no jardim. a junta e a câmara prestaram-lhe tributo. não precisa de tributos. é verdade. a sua igreja nunca o poderá esquecer. no seu oratório tinha sempre o evangelho. e o jornal do dia. para que não esquecer aqueles que precisavam. nunca esquecerei o bispo Luís Pereira. uma vida para os outros.
joaquim armindo
22/4/2024
(11) Memórias à Deriva
Estou no nosso sítio preferido, onde a perspectiva é infinita e sem fronteiras.
Vínhamos aqui sempre que nos reencontrávamos. Aqui conversávamos, recordávamos o que fomos, o que vivemos, as nossas memórias, de um jeito delicado para não nos magoarmos.
No entrelaçado das nossas memórias tentávamos celebrar, enaltecer e preservar o melhor do que delas havia, com carinho e cuidado.
Sabíamos que éramos frágeis, feridos pelo que podíamos ter sido e, por isso, revivíamos com alegria os pequenos momentos em que um dia fomos, num tempo em que não tínhamos medo de que um dia não fossemos mais.
Lembro-me da primeira vez que tive medo. Pegaste-me ao colo com força, uma força protectora, um colo quente e seguro. No teu abraço carinhoso, protector e paciente percorreste comigo todos os cantos dos meus medos e provaste-me que não havia razão para ter receio.
Ensinaste-me que mesmo que sentisse medo estarias sempre lá para me garantir que o teu abraço forte e quente seria o meu escudo protector. Tornaste-me guerreira e destemida. Sem medo do medo fizeste-me sentir invencível, confiante.
Admirava-te profundamente. Ter-te ao meu lado era sentir o mundo nas mãos.
E mostraste-me o Mundo.
Vagueamos de terra em terra, sempre com curiosidade, rumo ao desconhecido. Íamos apreciando as diferentes paisagens, cheiros, sons e sabores. De tanto percorrermos já tínhamos lugares nossos, sítios mágicos onde parávamos para recordar e ver como estavam.
Lembras-te da nossa árvore onde fizemos um juramento? Será que ela ainda existe?
Sofia d’Almeida Oliveira
(12) PAUSA PARA MEDITAR
Seguindo o Caminho Português de Santiago, passados alguns quilómetros de Tui, o peregrino depara-se, a dada altura, com um memorial composto por um crucifixo de pedra e uma lápide, numa pequena clareira entre os eucaliptos, por onde correm as águas cristalinas de um delgado regato.
O memorial assinala o local onde, em Abril de 1251, foi enterrado S. Telmo, bispo de Tui, vitimado por doença no regresso da peregrinação, e o regato cantante ostenta o sinistro nome de “rio das febres”. Na lápide pode ver-se a seguinte inscrição: “(...) Pede-lhe que fale com Deus a teu favor”.
Naquela clareira, pequeno vale retirado do buliço da estrada e da agitação do dia-a-dia, respira-se paz. É hora de poisar a mochila e fazer uma pausa para meditar.
Ana Ferreira da Silva
(13) Cinquenta anos de Abril
Hoje, é extremamente necessário discutir o que vem a ser liberdade, frente aos ataques que temos a ela.
Para alguns a liberdade está na natureza, no ser humano em seu estado natural e a sociedade surge e vem roubá-la. A liberdade que quer ser livre!
A liberdade é o resultado do tender das várias liberdades individuais que de alguma forma se complementam.
A liberdade é ainda, para outros, a comunhão e não isolamento e portanto ela acaba onde começa a do outro. Depois há ainda quem diz que ela é o ponto de chegada e não o de saída. Mas então o que é a liberdade se o próprio homem é servo das suas necessidades?
Hoje a liberdade não é mais igual há de cinquenta anos. A tal liberdade de abril, onde se lutava pelo medo ao clandestino.
Em 1974, eu era adolescente, quando rebentou a palavra liberdade. Mas para mim, como adolescente, eu corria com liberdade. Só depois, entendi que a liberdade afinal não era liberdade para muitos. Encontrei muitos a gritarem essa palavra que eu desconhecia na sua plenitude. No Sierra de cor beije ouvia vivas à liberdade e cantava com outros ‘Uma Gaivota voava”. Cinquenta anos depois de percorrer alguma vida , o mesmo país que gritava a liberdade, pergunta-se; será que é possível, chamar-se liberdade neste reino da necessidades, de luta e desinformação, onde a população continua a contar os tostões para sobreviver? O que foi que mudou no contexto da necessidade?
Ilda Pinto Almeida