Ana Pão Trigo, 37 anos, como sempre: autêntica, sem regras, mas sempre talentosa, ficam as palavras:
Conte-nos quando é que começou a desenhar e
quando é que começou a usar o desenho para ilustrar algo?
O gosto pelo desenho e pintura despertou em mim muito cedo, ainda na infância. Mas foi no 2.º ciclo do Ensino Básico que tive um professor de Educação Visual que viu em mim algum talento e me começou a incentivar e a ensinar estratégias de pintura e desenho. Foi meu professor até ao 9.º ano, chamava-se Prof. Fernando Oliveira, tinha por ele uma grande admiração e tentava seguir-lhe os passos. Julgo que a primeira vez que ilustrei alguma coisa “oficialmente” foi na Faculdade. Fazia parte da Associação de Estudantes e da Comissão de Praxe, ilustrei desde T-shirts para a Queima das Fitas à Colher de Pau (ah ah ah).
Qual o papel do desenho (e da arte em
geral) na sua vida?
Para mim, o desenho é a minha segunda arte. A primeira é escrever. Esse é o meu grande amor. Utilizo tanto o desenho como a escrita para “pensar alto”, para limpar a alma, fazer a catarse. Para além de me ajudar ao nível do bem-estar psicológico, sinto-me na obrigação de fazer algo para mudar o mundo. Julgo que essa é a função daqueles que nascem artistas. Não dos que se tornam artistas, mas sim dos que inevitável e irremediavelmente, mesmo que não queiram, são obrigados a sê-lo. É um dom inato que nos empurra a partilhar o nosso íntimo com a sociedade. Se souber que inspirei ou obriguei duas ou três pessoas a pensar, durante a minha vida, já fiz a minha parte.
Como é que faz a ilustração de um livro? É
um processo “técnico” (no sentido de regras, equilíbrios…) ou mais
intuitivo/emocional (do género “consigo visualizar esta cena”)?
Eu não tenho regras, para nada, do ponto de vista artístico. Nem gosto que me digam “quero que desenhes isto ou aquilo”. Não desenho, não consigo. É através da arte que me sinto um ser puramente livre! Agarro no meu carvão ou óleo e desenho. Sai, simplesmente. Se a obra me tocar emocionalmente, se me envolver, é só deixar fluir. Não penso em nada do que desenho. Os projetos são para os arquitetos. Eu desenho, risco, rasgo, apago e continuo a desenhar até sentir que no papel está um pouco de mim, daquilo que eu sou enquanto pessoa.
Falando especificamente do livro “MIGUEL E
O AVIÃO DE PAPEL”, qual é a sensação que tem ao ver, agora, o livro, já pronto,
nas mãos?
Sendo um livro para crianças, a primeira sensação é sentir-me enternecida. Achei que ficou uma doçura por ser tão simples e, ao mesmo tempo, tão cheio de conteúdo. Depois, vem a parte racional e sinto-me orgulhosa, como é óbvio. Um pouco de foco no resultado é sempre bom para a nossa autoestima. O processo é libertador, o resultado é uma espécie de “auto-abraço”.
Fale-nos um pouco sobre o ilustrar deste
livro. Foi fácil, intuitivo?
Foi bastante intuitivo. Fazendo eu parte da geração que foi mandada emigrar pelo nosso ex primeiro-ministro Dr. Pedro Passos Coelho, senti de imediato um envolvimento com a história. Nessa altura, tal como outros jovens, a revolta era imensa e a dificuldade em singrar no mundo do trabalho também. Não saí daqui e não sei se terei essa coragem, algum dia. O sentimento que nutro pela minha pátria, pelos meus, é algo de muito profundo. Consegui perceber a dor do Miguel. Contudo, também me foi possível ler essa dor com alguma ternura e equilibrar o amargo com um toque de mel.
Existe alguma parte do livro, em particular,
que a toque mais. Porquê? Influenciou o estilo/escolha do traço?
A parte que mais me tocou foi a despedida dos amigos e familiares. Seria o mais difícil para mim. Foi por aí que comecei, pelo avião com o coração partido, a carvão (preto e branco). Depois, veio a capa, as lágrimas do Miguel. Para ilustrar a capa peguei nos lápis de cor e a partir daí foi mais fácil desenhar as imagens mais alegres. O meu traço é sempre muito simples, desenho sempre com grafite. Tento imprimir a textura, a perspetiva através dos sombreados, traços, mais ou menos carregados. Uso diferentes grafites, com durezas diferentes, para obter esses efeitos e para passar as emoções para o papel.
Indique as razões pelas quais aconselharia
as pessoas a ler este livro? O que acha mais apelativo no livro?
Em primeiro lugar, este livro continua atual e carrega uma mensagem muito importante. Não há-de ser fácil emigrar! Será difícil para os adultos e muito mais para as crianças. Vai daí, este livro dá uma perspetiva positiva da emigração aos mais pequenos. Pode ajudar a compreender melhor as decisões difíceis dos adultos. Por outro lado, é uma mensagem de esperança para todos aqueles que se querem arriscar por uma vida melhor.
Dada a sua experiência como autora,
ilustradora e psicóloga, qual a importância da arte na vida das pessoas, em
particular no desenvolvimento dos mais novos?
É difícil separar estas dimensões todas da minha pessoa. Como psicóloga utilizo muitas estratégias terapêuticas baseadas no desenho e na escrita criativa. É uma forma de libertação, tal como já referi. A arte é uma ferramenta excelente para expressarmos aquilo que não conseguimos verbalizar. Além disso, sou uma defensora acérrima da promoção da criatividade no desenvolvimento das crianças. É uma competência fundamental ao longo da nossa vida, como por exemplo na tomada de decisões. Potencia a flexibilidade do pensamento, a resiliência, o saber lidar com imprevistos, com a frustração… No fundo, a criatividade é a chave de ouro para uma boa gestão das emoções. Nada melhor do que arte para ampliarmos a nossa criatividade.
Considera a arte, neste caso não apenas na
perspectiva de um apreciador, mas de alguém que “produz” algo, seja um bordado,
uma colagem, pintura, desenho, tocar um instrumento, etc, como sendo sempre uma
actividade (até na perspectiva de “escape”) recomendável e positiva? Ou é
apenas se a pessoa for boa na sua realização? Ou pode ser benéfico mesmo que o
resultado final não seja digno de ir para o Museu? Há mérito no processo por si
só?
Como forma de expressão, de libertação, não exige competências específicas. No entanto, julgo que para ter resultados positivos tem que haver, pelo menos, o gosto, a vontade. Nem toda a gente gosta de se expressar através da arte. Há quem deteste trabalhos manuais. Nada contra. Fazem outras atividades que sejam igualmente benéficas. Se estivermos a falar de arte digna de museu, aí sim, importa o resultado e não apenas o processo. A arte deve ser capaz de despertar algo no espectador. Não nascemos todos com vocação para a medicina, logo não somos todos artistas só porque nos esforçamos. Há que ter expectativas realistas para tudo na vida. A arte não tem que ir toda para um museu. Se for para ficar em casa, o processo é tudo o que importa.
Este é um livro infanto/juvenil, mais
provavelmente teremos estas entrevistas a ser lidas por adultos do que pelo
público alvo do livro, quer aproveitar, baseada na sua experiência e formação
profissional, para deixar algumas sugestões sobre como, individualmente ou em
família, se pode incentivar para a expressão artística?
A expressão artística não deve ter regras e essa é a regra número um. Assim sendo, é dar asas à imaginação e fazermos aquilo que nos confere bem-estar. Olhar para os materiais dos quais dispomos e criar. Devemos sempre partir de dentro para fora, das nossas emoções, dos nossos hábitos, dos nossos gostos particulares e nunca esquecermos que o melhor processo, a melhor ferramenta é essa: o que nos vai na alma. O material até podemos ir buscar ao caixote do lixo. Os adultos tendem a complicar o básico. E o básico é o nosso tempo. O tempo que temos para dar. Se houver envolvimento emocional, dedicação e tempo, uns lápis-de-cor e um papel de rascunho, uma caixa de cereais e fita-cola, já serão suficientes para colorir uma tarde.
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