sexta-feira, 8 de abril de 2022

Entrevista com Maria Saraiva de Menezes, autora do livro "MIGUEL E O AVIÃO DE PAPEL"

 

 Autora de mais de 20 livros publicados (e se calhar de outros tantos ainda por publicar), Maria Saraiva de Menezes, 51 anos, já é, e com todo o direito, uma repetente nestas entrevistas. Justifica-o o volume, e qualidade, do trabalho, mas porque é sempre um prazer falar-se com quem tem tanto para dizer. Desta vez o pretexto é o mais recente livro da colecção "Petizes Felizes!": MIGUEL E O AVIÃO DE PAPEL, lançado este mês no Dia Mundial do Livro Infantil, 2 de Abril. Este é já o terceiro título da autora a engrossar esta colecção.
Ouçamos a história do Miguel nas palavras da Maria:


Fale-nos um pouco sobre o seu livro.

‘Miguel e o Avião de Papel’ é um conto infanto-juvenil e encerra um enredo intenso sobre a migração. Leva os leitores à experiência da estranheza de chegar a um novo país e conhecer outras raças e culturas. É um veículo contra o preconceito e um hino à diferença. Também aborda a saudade e os ciclos da vida, além do inusitado e do quase absurdo, na perspectiva da criança.
O avião de papel é um símbolo transversal a toda a história e sustenta o seu eixo, desde a perda à nostalgia, desde o abandono dos amigos à chegada a um mundo novo e desconhecido, desde a despedida a um renascer inesperado.
Este livro fala da mudança e da instabilidade emocional que ela pode trazer a uma criança e à família em geral. Crescer em segurança num espaço próprio estrutura o sentimento de pertença que constrói o indivíduo como um ser gregário, ligado à sua cultura, à língua, aos hábitos e tradições. Quando há um elo que se rompe, sente-se desamparo e desespero. Foi isso que aconteceu a Miguel quando os pais lhe comunicaram que iam todos emigrar. O mesmo sentirá uma criança que é mandada para um colégio interno, que muda de terra devido ao divórcio dos pais, ou que abandona o seu país em situação de guerra ou calamidade. Nessa nova conjuntura, a ideia de país desintegra-se como porto seguro. O lar fica para trás e passa a pertencer ao domínio dos sonhos e da saudade. O choque pode ser brutal.

Relacionado ainda com a pergunta anterior, agora focando mais na mensagem, quando o escreveu foi a partir da observação de um fenómeno muito presente na vida portuguesa, ou mais com o intuito de ajudar os mais novos a perceber esse fenómeno?

Como escritora, faço o exercício de mergulhar em estados de espírito diversos e de encarnar quem vive situações concretas. Isso é possível porque enquanto ser humano sou capaz de sentir essa dor, partindo daí para a ficção. À semelhança de tantos, eu sempre mudei de casa, de país e até de língua. Deixei para trás, família e todos os amigos, na infância, na adolescência e na idade adulta. Mas esta história não é sobre mim e nem sequer coincide com a minha vida. Colhi apenas esse sentimento remoto do medo do desconhecido, a par da pena do afastamento das relações afectivas. A verdade é que escrevi este livro impulsionada pela emoção da grande crise económica que Portugal viveu em 2008, com determinado governo, e quando um primeiro-ministro de outro governo, em 2012, disse às famílias ‘Não sejam piegas, emigrem!” Eu quis sentir o que uma família sentiria quando fosse obrigada a emigrar, dadas as condições económicas. A verdade é que a minha família actual sentiu na pele a necessidade de emigrar para a China e não o fizemos porque me opus. De certa forma, não quis que os meus filhos perdessem o sentimento de pertença cultural, familiar, social, como eu, em tempos. Não lhes quis tirar Portugal. A consequência foi deixar de dar aulas porque não fui mais colocada a partir daí, na minha área. Então, imaginei como seria desistir de viver neste pequeno rectângulo, viajei imaginariamente pelo Google Earth e descobri uma terra chamada Sandwich na costa leste dos EUA, onde poderia buscar a felicidade para esta família imaginária. Assim nasceu esta história. Com todas estas linhas de influência, estava reunida a potência para ela nascer, inexoravelmente.

Indique as razões pelas quais aconselharia as pessoas a ler (ou dar a ler) o seu livro?

O intuito desta história foi falar de um assunto que não é trazido para as histórias infantis, habitualmente, isto é, a emigração. E por pensar que talvez alguns adultos não soubessem abordar o tema com os filhos, por ser complexo e envolver demasiados quebra-cabeças. Para além das questões financeiras, de deslocação territorial, de aprendizagem de uma nova língua e cultura, de mobilização enorme e complexa, de desenraizamento dos avós, além dos filhos em idade escolar, do que se trata, efectivamente, é de emoções. Repare que, depois de serem tomadas as medidas para a mudança, o único problema que subsiste é a desestabilização emocional das crianças e dos adultos. Conheço pais que seriam autoritários e imporiam a sua vontade de forma brusca para evitar ‘choradeiras’, em circunstâncias semelhantes. Mas essa postura parental ficou no século passado e não eleva o ser humano à capacidade de se auto-questionar, evoluir e compreender. Não faz nada pelos seres humanos em formação. Não alcança sequer a felicidade, objectivo último da condição humana. O que se trata aqui é de conferir autonomia emocional às crianças, dando-lhes espaço para se acostumarem à mudança. Falo de espaço psicológico onde o fortalecimento emocional vem com o respeito pelo que se está a sentir, acompanhado pelo diálogo.
As histórias infantis têm, inerentemente, uma função terapêutica. Ao ler ou ouvir, a criança fica solidária com a personagem, desenvolve empatia e resolve as suas próprias emoções, e sobretudo, certos medos do inconsciente. Ao ler sobre um assunto desconcertante, a criança aprende a ajustar as suas emoções e cresce interiormente, arranjando ferramentas e soluções. Ao dizer “Se querem ter filhos inteligentes leiam-lhes histórias,” Einstein sabia que longe ficou o modelo limitado da inteligência racional, parado no tempo com o cartesianismo do século XVIII. Ultrapassado esse simplismo da razão pura, graças ao desenvolvimento das neurociências que reforçam o papel da inteligência emocional, compreende-se como o ser humano se estrutura cognitivamente, confirmando-se a existência de uma mente emocional, como vinca na sua vasta obra, o Professor António Damásio, o ‘neurocientista das emoções’ (Conf. ‘O Erro de Descartes’, ‘Sentir e Saber’, ‘O Sentimento de Si’, etc.). Assim, este tema da emigração não trata apenas da deslocação de corpos animados antropomorfos do ponto A para o ponto B mas interessa-se pelo crescimento interior de que o ser humano beneficia ao compreender esta realidade.
Recomendo este livro para expor também que o quociente emocional (QE) é tão importante quanto o QI, sendo as emoções reguladoras da mente e por suposto, a chave da felicidade do ser humano. Mais do que calá-las há que saber ouvi-las e enquadrá-las num crescimento existencial sadio e pró-activo. Esta é uma história com três gerações, e por isso mesmo, pode ser lida pelas três. Há avós que são do tempo de: “Engole o choro!”, “Se não páras de chorar, já te dou uma razão para chorares mais”. Há também pais que são do tempo de: “Os homens não choram!”, “Pareces uma menina a chorar!”, “Pára de ser ‘mariquinhas’!” Esta disfunção psicológica que radica na ignorância e num certo protótipo conhecido da história, e que era, amiúde, acompanhado de violência, física e psicológica, disfarçada de modelo de educação, nada abona a favor dos próprios filhos, que são cidadãos de hoje e de amanhã, e merecem crescer com auto-consciência do seu valor enquanto seres-humanos num quadro de absoluta e natural igualdade de género, valorização da psique e da personalidade, estímulo cultural e motivação para o diálogo e a partilha de experiências. É a partir deste plano que serão valorizadas as características de cada um, seja a nível da sexualidade, da diferença ou da expressão muito própria do que cada um é e não num modelo esgotado de ser humano formatado artificialmente.

O protagonista deste livro não tem problemas em mostrar as suas emoções. Tendo em conta que ainda hoje se continua a insinuar que os homens têm dificuldades em expressar sentimentos (no extremo até nem o deveriam fazer), esse turbilhão de emoções do Miguel tinha uma intenção didáctica? E pensando em pais e educadores, pode ser um alerta para os (sentimentos, emoções) terem em consideração (mesmo que apareçam sob a forma de um bater de porta)?

Excelente e perspicaz questão. Aliás, antecipei parte da resposta na pergunta anterior. Do que esta história trata, efectivamente, é de emoções. Como já se descortina, repare que aqui não há estereótipos de género, todos colaboram em casa, fala-se de emoções, sem as ridicularizar como uma ‘histeria feminina’, há lugar para a revolta e a dor, sem esta ser abafada e descredibilizada. Este conto foi escrito à luz da mentalidade actual millenial e para as gerações Y e Z, narrando essa naturalidade de se ser igual em género e em mentalidade. Aqui não há lugar para os estereótipos da ‘velha-guarda’, em que o homem ‘ajudava’ em casa, em vez de fazer a sua parte, onde as meninas eram cedo discriminadas e chamadas a fazer tarefas domésticas ao contrário dos irmãos, que eram incentivados a estudar. Aqui, tanto o pai como a mãe ou os avós cozinham, limpam a casa e abordam as emoções dos filhos sem autoritarismo bacoco, mas com naturalidade e diálogo construtivo. Não há aqui um típico ‘macho-alfa’ que não sabe ouvir e impõe o silêncio e o ‘respeito’ de forma ditatorial. Estas são gerações que evoluíram através da formação para a cidadania com valores éticos como o respeito e a justiça. Na verdade, esta história não pretende fazer uma crítica a esse modelo datado, apenas o esqueceu há muito, e portanto, naturalmente, serve-se do modelo actual, jovem e refrescante de vida plena e expressiva. Há, pois, espaço para pensar e para fazer ajustes, apesar dos pesares.
Sim, esse bater de porta é um alerta. Miguel fica revoltado com a notícia de que toda a família tem de emigrar e tranca-se no quarto. Esta história pode ser um guia sobre como abordar esse impasse emocional. Serão todos os pais capazes da humildade e paciência deste pai? Sem infantilizar nem exercer paternalismo, ele mostra o caminho dentro do ‘labirinto’ e o seu ‘novelo de lã’ é a simplicidade, a empatia e a honestidade.
Quanto ao tema de pais retrógrados que castigariam por uma bater de porta ‘malcriado’, este pai teve a sagacidade de sentir que estava ali um desafio. E que ele não podia falhar. Não se trata aqui de puxar orelhas, meter de castigo ou ralhar. Esse modelo de pai não encontra lugar nesta história. Esta é uma história sobre pais do século XXI, pais que brincam com os filhos mas que também lhes explicam o que é a crise económica através de bolachas partidas, que cozinham em conjunto, como uma actividade reparadora e promotora de autonomia. São pais sem complexos falsos de superioridade, verdadeiramente capazes de construir uma relação e de interiorizar a evolução da mentalidade. São elementos essenciais para a felicidade e o bem-estar familiares.

Não resisto à provocação: porquê a preferência pelas bolachas partidas? Tem algum simbolismo?

As bolachas partidas simbolizam uma vida que se perdeu, que se desintegrou, mas traz ainda assim, boas memórias. O importante é destacar através delas, a boa relação que o pai tem com o filho, ao dedicar-se a fazer actividades construtivas e a transmitir ao filho ensinamentos. É possível sentir o efeito apaziguador desse momento entre pai e filho, onde o pai o conquista pelo estômago mas também pelo coração. Devido à dor e à revolta que Miguel sente, este constitui-se como um espaço de trégua, com a tal função reparadora que referi atrás. Denota, sobretudo, tempo de qualidade na relação. A par do avião de papel, símbolo por excelência da história, as bolachas partidas representam a possibilidade de nos recompormos e levantarmos acima dos destroços, sejam eles morais, económicos ou emocionais. Lamentavelmente, é uma reflexão actual neste cenário de guerra na Ucrânia, comprometendo a Europa e o mundo a acolher refugiados que estão a sentir e a passar por estas emoções, de forma ainda mais violenta, desumana e absurda.

Hoje em dia não faltam assuntos complicados para as famílias abordarem com os mais novos. Acha que a literatura pode ter um papel importante para ajudar nessas tarefas? E acha que a literatura deve ter esse papel, isto é, dentro da linha de que os contos infantis devem incluir uma moralidade (ou seja, deve-se poder retirar um ensinamento) alargar esse conceito para o abordar assuntos difíceis de uma forma, mais ou menos clara; ou deve manter uma atitude mais neutra e ficar-se apenas pelo entretenimento?

A literatura, tal como o teatro e o cinema, e a arte em geral, tem essa função terapêutica de que falava atrás. Uma história desafia o universo da criança expondo-lhe o perigo mas não a expondo ao perigo. Assim, a criança sabe que está protegida no seu meio entre o amor familiar e o aconchego do seu quarto, mas é exposta ao pressuposto do medo, do horror ou do perigo que a história contém. Não há melhor panaceia para a vida do que uma boa história horrível.
A arte, neste caso, a literatura, também é entretenimento mas não se esgota nele. É uma simbiose da existência e da cultura produzida. A consciência auto-analisa-se e auto-compreende-se através da arte, por isso, esta é terapêutica para quem dá e para quem recebe, para o artista e para o espectador. Literatura e entretenimento são dois campos intimamente ligados, a primeira sem o segundo seria pura erudição; o segundo sem a primeira seria vazio de espírito, oco. Ler um livro é um exercício de fruição construtiva que deve ser entusiasmante e divertido. Penso que pode haver um equilíbrio. Por um lado, sei que a fórmula das fábulas infantis continha essa moralidade em que o bem e o mal estavam bem delineados e a criança via claramente essas barreiras que separavam dois mundos. Porém parece-me que as histórias demasiado pedagógicas estafaram a fórmula, cansam por serem expressamente moralizantes. Daí o surgimento do paradoxo e até do desconcertante nos contos modernos. A estrutura mudou porque nem a criança nem o adulto procura um endoutrinamento, um lavar de mente. Apela-se à inteligência da criança mas também à sua capacidade de deslindar a ironia, o cinismo, o aparente e o engano. O conto moderno pode mesmo procurar inquietar para espicaçar o pensamento autónomo. Parece-me que uma história neutra nunca será uma boa história e não deixará marca, logo, se não transportar uma ideia, será vazia.

Tem mais projectos para estes géneros literários? Livros? Actividades?

Tenho sempre mais livros e projectos. Tenho algumas histórias escritas com temas fortes que não podiam deixar de ser escritas. Tenho outras mais serenas e fruto da harmonia existencial. São histórias à procura de editor e de leitores. É bom deixá-las a ‘marinar’, dar-lhes tempo para amadurecer, crescer, porque um livro nunca está pronto. Uma história também tem de saber esperar. Como complemento às histórias, trago sempre no horizonte a perspectiva de peças de teatro baseadas nelas, à semelhança do que aconteceu com três anteriores. Embora as políticas culturais neste país sejam pouco expressivas há sempre quem arrisque e contribua para a construção da verdadeira essência da nacionalidade, que é a cultura.
Para terminar, quero realçar o belo trabalho da ilustradora Ana Catarina Pão Trigo com ilustrações minimalistas e, por isso mesmo, cheias de força na mensagem. Cada desenho é uma afirmação do que é importante nesta história e daquilo por que passou quem viveu momentos semelhantes. A boneca-de-trapos de Martinha é capaz, por si só, de ‘fazer chorar as pedras da calçada’, para usar uma expressão bem portuguesa. O porquinho-mealheiro diz tanto, que resume inteiramente a questão da emigração e da crise económica. Para não falar no avião de papel da capa, que nos convida a voar com a personagem principal, e ao mesmo tempo, a partilhar a sua dor.
No final da história, por falar em actividades, a ilustradora partilha com o jovem leitor, instruções para construir um avião de papel. Deixa-nos com uma actividade que nos torna parte da história e nos remete para o universo da mesma.


Nota: a autora escreve de acordo com a ortografia anterior ao acordo ortográfico 1990.

Pode ver a entrevista com a ilustradora, Ana Pão Trigo, aqui:

Pode ler, ou reler, as outras entrevistas da autora aqui: 

Pode seguir a autora em:




MIGUEL E O AVIÃO DE PAPEL; Maria Saraiva de Menezes
PVP: 8,00€
68 páginas, capa mole; Tecto de Nuvens, 2022
Número 6 da colecção "Petizes Felizes!

“Cuidadosamente, Miguel dobra as asas, depois levanta a cauda do avião, dobra outra vez e já está. Pega na caneta para desenhar as janelas, mas começa a escrever o nome de todos os seus amigos. Sabe que já se está a despedir do seu país e dos seus amigos. Limpa as lágrimas outra vez, e funga com muita força, de raiva. O Miguel não compreende porque tem de emigrar.”


Outras obras da autora:






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