sexta-feira, 8 de abril de 2022

Ana Pão Trigo, ilustradora do livro "MIGUEL E O AVIÃO DE PAPEL, em entrevista

 

 Já por cá tinha andado enquanto "Poetisa de Pé Descalço", depois voltou como autora e ilustradora do livro "Sonhos de Helicóptero, Cara de Pato", e agora regressa, ainda no âmbito da colecção "Petizes Felizes!", como ilustradora do mais recente título desta colecção: "MIGUEL E O AVIÃO DE PAPEL", de Maria Saraiva de Menezes. - E se calhar, regressa em breve para apresentar mais qualquer coisa. .  Na semana em que o livro foi lançado e em que ganhou o Desafio do mês de Março com o poema "MULHER, sê autêntica", fala-nos da experiência deste livro e do modo como ilustrou.
Ana Pão Trigo, 37 anos, como sempre: autêntica, sem regras, mas sempre talentosa, ficam as palavras:


 

  Conte-nos quando é que começou a desenhar e quando é que começou a usar o desenho para ilustrar algo?

O gosto pelo desenho e pintura despertou em mim muito cedo, ainda na infância. Mas foi no 2.º ciclo do Ensino Básico que tive um professor de Educação Visual que viu em mim algum talento e me começou a incentivar e a ensinar estratégias de pintura e desenho. Foi meu professor até ao 9.º ano, chamava-se Prof. Fernando Oliveira, tinha por ele uma grande admiração e tentava seguir-lhe os passos. Julgo que a primeira vez que ilustrei alguma coisa “oficialmente” foi na Faculdade. Fazia parte da Associação de Estudantes e da Comissão de Praxe, ilustrei desde T-shirts para a Queima das Fitas à Colher de Pau (ah ah ah).

  Qual o papel do desenho (e da arte em geral) na sua vida?

Para mim, o desenho é a minha segunda arte. A primeira é escrever. Esse é o meu grande amor. Utilizo tanto o desenho como a escrita para “pensar alto”, para limpar a alma, fazer a catarse. Para além de me ajudar ao nível do bem-estar psicológico, sinto-me na obrigação de fazer algo para mudar o mundo. Julgo que essa é a função daqueles que nascem artistas. Não dos que se tornam artistas, mas sim dos que inevitável e irremediavelmente, mesmo que não queiram, são obrigados a sê-lo. É um dom inato que nos empurra a partilhar o nosso íntimo com a sociedade. Se souber que inspirei ou obriguei duas ou três pessoas a pensar, durante a minha vida, já fiz a minha parte.

  Como é que faz a ilustração de um livro? É um processo “técnico” (no sentido de regras, equilíbrios…) ou mais intuitivo/emocional (do género “consigo visualizar esta cena”)?

Eu não tenho regras, para nada, do ponto de vista artístico. Nem gosto que me digam “quero que desenhes isto ou aquilo”. Não desenho, não consigo. É através da arte que me sinto um ser puramente livre! Agarro no meu carvão ou óleo e desenho. Sai, simplesmente. Se a obra me tocar emocionalmente, se me envolver, é só deixar fluir. Não penso em nada do que desenho. Os projetos são para os arquitetos. Eu desenho, risco, rasgo, apago e continuo a desenhar até sentir que no papel está um pouco de mim, daquilo que eu sou enquanto pessoa.

  Falando especificamente do livro “MIGUEL E O AVIÃO DE PAPEL”, qual é a sensação que tem ao ver, agora, o livro, já pronto, nas mãos?

Sendo um livro para crianças, a primeira sensação é sentir-me enternecida. Achei que ficou uma doçura por ser tão simples e, ao mesmo tempo, tão cheio de conteúdo. Depois, vem a parte racional e sinto-me orgulhosa, como é óbvio. Um pouco de foco no resultado é sempre bom para a nossa autoestima. O processo é libertador, o resultado é uma espécie de “auto-abraço”.

  Fale-nos um pouco sobre o ilustrar deste livro. Foi fácil, intuitivo?

Foi bastante intuitivo. Fazendo eu parte da geração que foi mandada emigrar pelo nosso ex primeiro-ministro Dr. Pedro Passos Coelho, senti de imediato um envolvimento com a história. Nessa altura, tal como outros jovens, a revolta era imensa e a dificuldade em singrar no mundo do trabalho também. Não saí daqui e não sei se terei essa coragem, algum dia. O sentimento que nutro pela minha pátria, pelos meus, é algo de muito profundo. Consegui perceber a dor do Miguel. Contudo, também me foi possível ler essa dor com alguma ternura e equilibrar o amargo com um toque de mel.

  Existe alguma parte do livro, em particular, que a toque mais. Porquê? Influenciou o estilo/escolha do traço?

A parte que mais me tocou foi a despedida dos amigos e familiares. Seria o mais difícil para mim. Foi por aí que comecei, pelo avião com o coração partido, a carvão (preto e branco). Depois, veio a capa, as lágrimas do Miguel. Para ilustrar a capa peguei nos lápis de cor e a partir daí foi mais fácil desenhar as imagens mais alegres. O meu traço é sempre muito simples, desenho sempre com grafite. Tento imprimir a textura, a perspetiva através dos sombreados, traços, mais ou menos carregados. Uso diferentes grafites, com durezas diferentes, para obter esses efeitos e para passar as emoções para o papel.

  Indique as razões pelas quais aconselharia as pessoas a ler este livro? O que acha mais apelativo no livro?

Em primeiro lugar, este livro continua atual e carrega uma mensagem muito importante. Não há-de ser fácil emigrar! Será difícil para os adultos e muito mais para as crianças. Vai daí, este livro dá uma perspetiva positiva da emigração aos mais pequenos. Pode ajudar a compreender melhor as decisões difíceis dos adultos. Por outro lado, é uma mensagem de esperança para todos aqueles que se querem arriscar por uma vida melhor.

  Dada a sua experiência como autora, ilustradora e psicóloga, qual a importância da arte na vida das pessoas, em particular no desenvolvimento dos mais novos?

É difícil separar estas dimensões todas da minha pessoa. Como psicóloga utilizo muitas estratégias terapêuticas baseadas no desenho e na escrita criativa. É uma forma de libertação, tal como já referi. A arte é uma ferramenta excelente para expressarmos aquilo que não conseguimos verbalizar. Além disso, sou uma defensora acérrima da promoção da criatividade no desenvolvimento das crianças. É uma competência fundamental ao longo da nossa vida, como por exemplo na tomada de decisões. Potencia a flexibilidade do pensamento, a resiliência, o saber lidar com imprevistos, com a frustração… No fundo, a criatividade é a chave de ouro para uma boa gestão das emoções. Nada melhor do que arte para ampliarmos a nossa criatividade.

  Considera a arte, neste caso não apenas na perspectiva de um apreciador, mas de alguém que “produz” algo, seja um bordado, uma colagem, pintura, desenho, tocar um instrumento, etc, como sendo sempre uma actividade (até na perspectiva de “escape”) recomendável e positiva? Ou é apenas se a pessoa for boa na sua realização? Ou pode ser benéfico mesmo que o resultado final não seja digno de ir para o Museu? Há mérito no processo por si só?

Como forma de expressão, de libertação, não exige competências específicas. No entanto, julgo que para ter resultados positivos tem que haver, pelo menos, o gosto, a vontade. Nem toda a gente gosta de se expressar através da arte. Há quem deteste trabalhos manuais. Nada contra. Fazem outras atividades que sejam igualmente benéficas. Se estivermos a falar de arte digna de museu, aí sim, importa o resultado e não apenas o processo. A arte deve ser capaz de despertar algo no espectador. Não nascemos todos com vocação para a medicina, logo não somos todos artistas só porque nos esforçamos. Há que ter expectativas realistas para tudo na vida. A arte não tem que ir toda para um museu. Se for para ficar em casa, o processo é tudo o que importa.

  Este é um livro infanto/juvenil, mais provavelmente teremos estas entrevistas a ser lidas por adultos do que pelo público alvo do livro, quer aproveitar, baseada na sua experiência e formação profissional, para deixar algumas sugestões sobre como, individualmente ou em família, se pode incentivar para a expressão artística?

A expressão artística não deve ter regras e essa é a regra número um. Assim sendo, é dar asas à imaginação e fazermos aquilo que nos confere bem-estar. Olhar para os materiais dos quais dispomos e criar. Devemos sempre partir de dentro para fora, das nossas emoções, dos nossos hábitos, dos nossos gostos particulares e nunca esquecermos que o melhor processo, a melhor ferramenta é essa: o que nos vai na alma. O material até podemos ir buscar ao caixote do lixo. Os adultos tendem a complicar o básico. E o básico é o nosso tempo. O tempo que temos para dar. Se houver envolvimento emocional, dedicação e tempo, uns lápis-de-cor e um papel de rascunho, uma caixa de cereais e fita-cola, já serão suficientes para colorir uma tarde.

Pode ler a entrevista da Maria Saraiva de Menezes, a autora do livro MIGUEL E O AVIÃO DE PAPEL, aqui: https://tectonuvens.blogspot.com/2022/04/entrevista-com-maria-saraiva-de-menezes.html

Pode ler ou reler as outras entrevistas da Ana Pão Trigo

Pode acompanhar a autora/ilustradora aqui: 



MIGUEL E O AVIÃO DE PAPEL
; Maria Saraiva de Menezes
PVP: 8,00€
68 páginas, capa mole; Tecto de Nuvens, 2022
Número 6 da colecção "Petizes Felizes!

“Cuidadosamente, Miguel dobra as asas, depois levanta a cauda do avião, dobra outra vez e já está. Pega na caneta para desenhar as janelas, mas começa a escrever o nome de todos os seus amigos. Sabe que já se está a despedir do seu país e dos seus amigos. Limpa as lágrimas outra vez, e funga com muita força, de raiva. O Miguel não compreende porque tem de emigrar.”

Da autoria de Ana Pão Trigo: 




Entrevista com Maria Saraiva de Menezes, autora do livro "MIGUEL E O AVIÃO DE PAPEL"

 

 Autora de mais de 20 livros publicados (e se calhar de outros tantos ainda por publicar), Maria Saraiva de Menezes, 51 anos, já é, e com todo o direito, uma repetente nestas entrevistas. Justifica-o o volume, e qualidade, do trabalho, mas porque é sempre um prazer falar-se com quem tem tanto para dizer. Desta vez o pretexto é o mais recente livro da colecção "Petizes Felizes!": MIGUEL E O AVIÃO DE PAPEL, lançado este mês no Dia Mundial do Livro Infantil, 2 de Abril. Este é já o terceiro título da autora a engrossar esta colecção.
Ouçamos a história do Miguel nas palavras da Maria:


Fale-nos um pouco sobre o seu livro.

‘Miguel e o Avião de Papel’ é um conto infanto-juvenil e encerra um enredo intenso sobre a migração. Leva os leitores à experiência da estranheza de chegar a um novo país e conhecer outras raças e culturas. É um veículo contra o preconceito e um hino à diferença. Também aborda a saudade e os ciclos da vida, além do inusitado e do quase absurdo, na perspectiva da criança.
O avião de papel é um símbolo transversal a toda a história e sustenta o seu eixo, desde a perda à nostalgia, desde o abandono dos amigos à chegada a um mundo novo e desconhecido, desde a despedida a um renascer inesperado.
Este livro fala da mudança e da instabilidade emocional que ela pode trazer a uma criança e à família em geral. Crescer em segurança num espaço próprio estrutura o sentimento de pertença que constrói o indivíduo como um ser gregário, ligado à sua cultura, à língua, aos hábitos e tradições. Quando há um elo que se rompe, sente-se desamparo e desespero. Foi isso que aconteceu a Miguel quando os pais lhe comunicaram que iam todos emigrar. O mesmo sentirá uma criança que é mandada para um colégio interno, que muda de terra devido ao divórcio dos pais, ou que abandona o seu país em situação de guerra ou calamidade. Nessa nova conjuntura, a ideia de país desintegra-se como porto seguro. O lar fica para trás e passa a pertencer ao domínio dos sonhos e da saudade. O choque pode ser brutal.

Relacionado ainda com a pergunta anterior, agora focando mais na mensagem, quando o escreveu foi a partir da observação de um fenómeno muito presente na vida portuguesa, ou mais com o intuito de ajudar os mais novos a perceber esse fenómeno?

Como escritora, faço o exercício de mergulhar em estados de espírito diversos e de encarnar quem vive situações concretas. Isso é possível porque enquanto ser humano sou capaz de sentir essa dor, partindo daí para a ficção. À semelhança de tantos, eu sempre mudei de casa, de país e até de língua. Deixei para trás, família e todos os amigos, na infância, na adolescência e na idade adulta. Mas esta história não é sobre mim e nem sequer coincide com a minha vida. Colhi apenas esse sentimento remoto do medo do desconhecido, a par da pena do afastamento das relações afectivas. A verdade é que escrevi este livro impulsionada pela emoção da grande crise económica que Portugal viveu em 2008, com determinado governo, e quando um primeiro-ministro de outro governo, em 2012, disse às famílias ‘Não sejam piegas, emigrem!” Eu quis sentir o que uma família sentiria quando fosse obrigada a emigrar, dadas as condições económicas. A verdade é que a minha família actual sentiu na pele a necessidade de emigrar para a China e não o fizemos porque me opus. De certa forma, não quis que os meus filhos perdessem o sentimento de pertença cultural, familiar, social, como eu, em tempos. Não lhes quis tirar Portugal. A consequência foi deixar de dar aulas porque não fui mais colocada a partir daí, na minha área. Então, imaginei como seria desistir de viver neste pequeno rectângulo, viajei imaginariamente pelo Google Earth e descobri uma terra chamada Sandwich na costa leste dos EUA, onde poderia buscar a felicidade para esta família imaginária. Assim nasceu esta história. Com todas estas linhas de influência, estava reunida a potência para ela nascer, inexoravelmente.

Indique as razões pelas quais aconselharia as pessoas a ler (ou dar a ler) o seu livro?

O intuito desta história foi falar de um assunto que não é trazido para as histórias infantis, habitualmente, isto é, a emigração. E por pensar que talvez alguns adultos não soubessem abordar o tema com os filhos, por ser complexo e envolver demasiados quebra-cabeças. Para além das questões financeiras, de deslocação territorial, de aprendizagem de uma nova língua e cultura, de mobilização enorme e complexa, de desenraizamento dos avós, além dos filhos em idade escolar, do que se trata, efectivamente, é de emoções. Repare que, depois de serem tomadas as medidas para a mudança, o único problema que subsiste é a desestabilização emocional das crianças e dos adultos. Conheço pais que seriam autoritários e imporiam a sua vontade de forma brusca para evitar ‘choradeiras’, em circunstâncias semelhantes. Mas essa postura parental ficou no século passado e não eleva o ser humano à capacidade de se auto-questionar, evoluir e compreender. Não faz nada pelos seres humanos em formação. Não alcança sequer a felicidade, objectivo último da condição humana. O que se trata aqui é de conferir autonomia emocional às crianças, dando-lhes espaço para se acostumarem à mudança. Falo de espaço psicológico onde o fortalecimento emocional vem com o respeito pelo que se está a sentir, acompanhado pelo diálogo.
As histórias infantis têm, inerentemente, uma função terapêutica. Ao ler ou ouvir, a criança fica solidária com a personagem, desenvolve empatia e resolve as suas próprias emoções, e sobretudo, certos medos do inconsciente. Ao ler sobre um assunto desconcertante, a criança aprende a ajustar as suas emoções e cresce interiormente, arranjando ferramentas e soluções. Ao dizer “Se querem ter filhos inteligentes leiam-lhes histórias,” Einstein sabia que longe ficou o modelo limitado da inteligência racional, parado no tempo com o cartesianismo do século XVIII. Ultrapassado esse simplismo da razão pura, graças ao desenvolvimento das neurociências que reforçam o papel da inteligência emocional, compreende-se como o ser humano se estrutura cognitivamente, confirmando-se a existência de uma mente emocional, como vinca na sua vasta obra, o Professor António Damásio, o ‘neurocientista das emoções’ (Conf. ‘O Erro de Descartes’, ‘Sentir e Saber’, ‘O Sentimento de Si’, etc.). Assim, este tema da emigração não trata apenas da deslocação de corpos animados antropomorfos do ponto A para o ponto B mas interessa-se pelo crescimento interior de que o ser humano beneficia ao compreender esta realidade.
Recomendo este livro para expor também que o quociente emocional (QE) é tão importante quanto o QI, sendo as emoções reguladoras da mente e por suposto, a chave da felicidade do ser humano. Mais do que calá-las há que saber ouvi-las e enquadrá-las num crescimento existencial sadio e pró-activo. Esta é uma história com três gerações, e por isso mesmo, pode ser lida pelas três. Há avós que são do tempo de: “Engole o choro!”, “Se não páras de chorar, já te dou uma razão para chorares mais”. Há também pais que são do tempo de: “Os homens não choram!”, “Pareces uma menina a chorar!”, “Pára de ser ‘mariquinhas’!” Esta disfunção psicológica que radica na ignorância e num certo protótipo conhecido da história, e que era, amiúde, acompanhado de violência, física e psicológica, disfarçada de modelo de educação, nada abona a favor dos próprios filhos, que são cidadãos de hoje e de amanhã, e merecem crescer com auto-consciência do seu valor enquanto seres-humanos num quadro de absoluta e natural igualdade de género, valorização da psique e da personalidade, estímulo cultural e motivação para o diálogo e a partilha de experiências. É a partir deste plano que serão valorizadas as características de cada um, seja a nível da sexualidade, da diferença ou da expressão muito própria do que cada um é e não num modelo esgotado de ser humano formatado artificialmente.

O protagonista deste livro não tem problemas em mostrar as suas emoções. Tendo em conta que ainda hoje se continua a insinuar que os homens têm dificuldades em expressar sentimentos (no extremo até nem o deveriam fazer), esse turbilhão de emoções do Miguel tinha uma intenção didáctica? E pensando em pais e educadores, pode ser um alerta para os (sentimentos, emoções) terem em consideração (mesmo que apareçam sob a forma de um bater de porta)?

Excelente e perspicaz questão. Aliás, antecipei parte da resposta na pergunta anterior. Do que esta história trata, efectivamente, é de emoções. Como já se descortina, repare que aqui não há estereótipos de género, todos colaboram em casa, fala-se de emoções, sem as ridicularizar como uma ‘histeria feminina’, há lugar para a revolta e a dor, sem esta ser abafada e descredibilizada. Este conto foi escrito à luz da mentalidade actual millenial e para as gerações Y e Z, narrando essa naturalidade de se ser igual em género e em mentalidade. Aqui não há lugar para os estereótipos da ‘velha-guarda’, em que o homem ‘ajudava’ em casa, em vez de fazer a sua parte, onde as meninas eram cedo discriminadas e chamadas a fazer tarefas domésticas ao contrário dos irmãos, que eram incentivados a estudar. Aqui, tanto o pai como a mãe ou os avós cozinham, limpam a casa e abordam as emoções dos filhos sem autoritarismo bacoco, mas com naturalidade e diálogo construtivo. Não há aqui um típico ‘macho-alfa’ que não sabe ouvir e impõe o silêncio e o ‘respeito’ de forma ditatorial. Estas são gerações que evoluíram através da formação para a cidadania com valores éticos como o respeito e a justiça. Na verdade, esta história não pretende fazer uma crítica a esse modelo datado, apenas o esqueceu há muito, e portanto, naturalmente, serve-se do modelo actual, jovem e refrescante de vida plena e expressiva. Há, pois, espaço para pensar e para fazer ajustes, apesar dos pesares.
Sim, esse bater de porta é um alerta. Miguel fica revoltado com a notícia de que toda a família tem de emigrar e tranca-se no quarto. Esta história pode ser um guia sobre como abordar esse impasse emocional. Serão todos os pais capazes da humildade e paciência deste pai? Sem infantilizar nem exercer paternalismo, ele mostra o caminho dentro do ‘labirinto’ e o seu ‘novelo de lã’ é a simplicidade, a empatia e a honestidade.
Quanto ao tema de pais retrógrados que castigariam por uma bater de porta ‘malcriado’, este pai teve a sagacidade de sentir que estava ali um desafio. E que ele não podia falhar. Não se trata aqui de puxar orelhas, meter de castigo ou ralhar. Esse modelo de pai não encontra lugar nesta história. Esta é uma história sobre pais do século XXI, pais que brincam com os filhos mas que também lhes explicam o que é a crise económica através de bolachas partidas, que cozinham em conjunto, como uma actividade reparadora e promotora de autonomia. São pais sem complexos falsos de superioridade, verdadeiramente capazes de construir uma relação e de interiorizar a evolução da mentalidade. São elementos essenciais para a felicidade e o bem-estar familiares.

Não resisto à provocação: porquê a preferência pelas bolachas partidas? Tem algum simbolismo?

As bolachas partidas simbolizam uma vida que se perdeu, que se desintegrou, mas traz ainda assim, boas memórias. O importante é destacar através delas, a boa relação que o pai tem com o filho, ao dedicar-se a fazer actividades construtivas e a transmitir ao filho ensinamentos. É possível sentir o efeito apaziguador desse momento entre pai e filho, onde o pai o conquista pelo estômago mas também pelo coração. Devido à dor e à revolta que Miguel sente, este constitui-se como um espaço de trégua, com a tal função reparadora que referi atrás. Denota, sobretudo, tempo de qualidade na relação. A par do avião de papel, símbolo por excelência da história, as bolachas partidas representam a possibilidade de nos recompormos e levantarmos acima dos destroços, sejam eles morais, económicos ou emocionais. Lamentavelmente, é uma reflexão actual neste cenário de guerra na Ucrânia, comprometendo a Europa e o mundo a acolher refugiados que estão a sentir e a passar por estas emoções, de forma ainda mais violenta, desumana e absurda.

Hoje em dia não faltam assuntos complicados para as famílias abordarem com os mais novos. Acha que a literatura pode ter um papel importante para ajudar nessas tarefas? E acha que a literatura deve ter esse papel, isto é, dentro da linha de que os contos infantis devem incluir uma moralidade (ou seja, deve-se poder retirar um ensinamento) alargar esse conceito para o abordar assuntos difíceis de uma forma, mais ou menos clara; ou deve manter uma atitude mais neutra e ficar-se apenas pelo entretenimento?

A literatura, tal como o teatro e o cinema, e a arte em geral, tem essa função terapêutica de que falava atrás. Uma história desafia o universo da criança expondo-lhe o perigo mas não a expondo ao perigo. Assim, a criança sabe que está protegida no seu meio entre o amor familiar e o aconchego do seu quarto, mas é exposta ao pressuposto do medo, do horror ou do perigo que a história contém. Não há melhor panaceia para a vida do que uma boa história horrível.
A arte, neste caso, a literatura, também é entretenimento mas não se esgota nele. É uma simbiose da existência e da cultura produzida. A consciência auto-analisa-se e auto-compreende-se através da arte, por isso, esta é terapêutica para quem dá e para quem recebe, para o artista e para o espectador. Literatura e entretenimento são dois campos intimamente ligados, a primeira sem o segundo seria pura erudição; o segundo sem a primeira seria vazio de espírito, oco. Ler um livro é um exercício de fruição construtiva que deve ser entusiasmante e divertido. Penso que pode haver um equilíbrio. Por um lado, sei que a fórmula das fábulas infantis continha essa moralidade em que o bem e o mal estavam bem delineados e a criança via claramente essas barreiras que separavam dois mundos. Porém parece-me que as histórias demasiado pedagógicas estafaram a fórmula, cansam por serem expressamente moralizantes. Daí o surgimento do paradoxo e até do desconcertante nos contos modernos. A estrutura mudou porque nem a criança nem o adulto procura um endoutrinamento, um lavar de mente. Apela-se à inteligência da criança mas também à sua capacidade de deslindar a ironia, o cinismo, o aparente e o engano. O conto moderno pode mesmo procurar inquietar para espicaçar o pensamento autónomo. Parece-me que uma história neutra nunca será uma boa história e não deixará marca, logo, se não transportar uma ideia, será vazia.

Tem mais projectos para estes géneros literários? Livros? Actividades?

Tenho sempre mais livros e projectos. Tenho algumas histórias escritas com temas fortes que não podiam deixar de ser escritas. Tenho outras mais serenas e fruto da harmonia existencial. São histórias à procura de editor e de leitores. É bom deixá-las a ‘marinar’, dar-lhes tempo para amadurecer, crescer, porque um livro nunca está pronto. Uma história também tem de saber esperar. Como complemento às histórias, trago sempre no horizonte a perspectiva de peças de teatro baseadas nelas, à semelhança do que aconteceu com três anteriores. Embora as políticas culturais neste país sejam pouco expressivas há sempre quem arrisque e contribua para a construção da verdadeira essência da nacionalidade, que é a cultura.
Para terminar, quero realçar o belo trabalho da ilustradora Ana Catarina Pão Trigo com ilustrações minimalistas e, por isso mesmo, cheias de força na mensagem. Cada desenho é uma afirmação do que é importante nesta história e daquilo por que passou quem viveu momentos semelhantes. A boneca-de-trapos de Martinha é capaz, por si só, de ‘fazer chorar as pedras da calçada’, para usar uma expressão bem portuguesa. O porquinho-mealheiro diz tanto, que resume inteiramente a questão da emigração e da crise económica. Para não falar no avião de papel da capa, que nos convida a voar com a personagem principal, e ao mesmo tempo, a partilhar a sua dor.
No final da história, por falar em actividades, a ilustradora partilha com o jovem leitor, instruções para construir um avião de papel. Deixa-nos com uma actividade que nos torna parte da história e nos remete para o universo da mesma.


Nota: a autora escreve de acordo com a ortografia anterior ao acordo ortográfico 1990.

Pode ver a entrevista com a ilustradora, Ana Pão Trigo, aqui:

Pode ler, ou reler, as outras entrevistas da autora aqui: 

Pode seguir a autora em:




MIGUEL E O AVIÃO DE PAPEL; Maria Saraiva de Menezes
PVP: 8,00€
68 páginas, capa mole; Tecto de Nuvens, 2022
Número 6 da colecção "Petizes Felizes!

“Cuidadosamente, Miguel dobra as asas, depois levanta a cauda do avião, dobra outra vez e já está. Pega na caneta para desenhar as janelas, mas começa a escrever o nome de todos os seus amigos. Sabe que já se está a despedir do seu país e dos seus amigos. Limpa as lágrimas outra vez, e funga com muita força, de raiva. O Miguel não compreende porque tem de emigrar.”


Outras obras da autora:






Se estiver interessado em comprar algum dos livros ou obter alguma informação sobre os livros ou a autora, envie-nos um email para: informacoes@tecto-de-nuvens.pt

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Desafios de autores para autores: Dia Mundial do Livro

 

Dia Mundial do Livro

O desafio para este mês, em que no dia 23 se celebra o Dia Mundial do Livro, é uma espécie de partilha, num pequeno texto, com menos de 20 linhas (podem usar uma folha A5 como referência) falem sobre um livro que vos tenha marcado. Pode ser o primeiro livro que leram, que vos foi lido, o primeiro livro que tiveram, que escreveram, etc.  Neste dia, em prosa, celebraremos o livro e o modo como nos faz companhia, nos ensina, nos molda, nos leva a viajar...
Podem começar os vossos trabalhos com "O livro da minha vida é...". 
Recapitulando: um texto em prosa, com um máximo de 19 linhas (se conseguirem o vosso objectivo em 3 ou 4 linhas não se sintam mal, as 19 linhas destinam-se aos "palavrosos"); deve ser uma referência a um livro (ou o livro) que vos marcou; não é uma recensão ou uma sinopse, é um testemunho sobre como o livro vos tocou.
Queríamos muito a vossa participação neste Desafio, não é um exercício literário, não há escolhas melhores do que a outras, nem estilos mais adequados, é o vosso sentimento. Aquilo que nos liga a todos aqui são os livros, por uma vez, vamos dar-lhes o merecido destaque.
Vamos colocar os textos online do dia 23, agradecíamos que todas as participações nos chegassem até às 19 horas do dia 22 de Abril. - Podem começar a enviar já. -

A partir do dia 23 de Abril e até ao dia 8 de Maio de 2022 vamos ter um "votação" aberta. É uma "votação" porque queremos apenas as opiniões de quem passa pelo blogue e que podem (e devem) ser também de quem enviou os textos para participação. Queremos alguma interacção, um "eu também senti o mesmo quando li esse livro", "esse também foi o meu primeiro livro", "sempre ouvi falar desse livro e ainda não tive oportunidade de o ler", etc. Não interessa o que escrevem, mas são também convidados a partilhar essa experiência com o livro. Por sorteio, daremos um prémio a um dos autores e a um dos "votantes" (por favor, identifiquem-se, mesmo que queiram permanecer anónimos, os comentários não são visíveis automaticamente, pelo que há tempo para retirar os vossos dados pessoais do comentário).

Os premiados receberão uma lista com livros em prosa (incluindo infantis) de onde poderão escolher um título) receberão ainda um voucher de desconto de 15% numa compra na nossa loja online (se escolherem apenas um livro e este ainda tiver estatuto de novidade, de acordo com a Lei, apenas poderemos fazer um desconto de 10%).

Para participarem, ou esclarecem um dúvida, podem usar os emails: geral@tecto-de-nuvens.pt ou tectodenuvens@hotmail.com



José Amado em entrevista

 


José Amado, 72 anos, é uma estreia tanto na Tecto de Nuvens, como nas publicações, mas a escrita já vem de trás. "ANIMAIS, novo sopro de vida - poemas - " é o seu primeiro livro, mas espera-se, e deseja-se, que não seja o último.  Nesta entrevista o autor explica a escolha da temática para estes poemas (a pintura que ilustra a capa é também de sua autoria) e fala do seu percurso ligado à escrita e a outras artes.

José Amado, por voz própria:


  Conte-nos como e porquê começou a escrever, por paixão ou por necessidade?

Talvez a necessidade tenha surgido primeiro. Participei num jornal de parede de grupo de Jovens no tempo de adolescência e com incorporação (obrigatória) na vida militar, recorria à escrita de cartas abertas para todo o grupo; quando da mobilização para África, escrevia em aerogramas, para me sentir ligado aos conhecidos sacavenenses, aos camaradas militares colocados noutras terras ultramarinas e a mais de uma dezena de madrinhas de guerra (a maioria das quais nunca me encontrei presencialmente). Guardei a poesia desse tempo, na gaveta, e ainda não a publiquei.

  Qual o papel que a escrita ocupa na sua vida?

Achei que não seria o meu desígnio. Havia muito para fazer na tecnologia e sobrava pouco tempo para escrever. A mim mesmo, dizia: tens que escrever mesmo pouco em cada ano, para que o cérebro com quadrante esquerdo dominante, não te deforme como ser humano. Assisti a uma formação de 3 dias em Neurolinguística e saí de lá a pensar que ia mudar, utilizar todos os quadrantes do cérebro. A pouco e pouco mudei, mas foi só um bocadinho.
Com a pandemia, o confinamento desfez-me (e a todos os mortais) os desejos de viajar e perante a clausura, os hobbies deixaram de o ser e passaram a ser a única forma de me expressar. Acordava para escrever, ler, pintar e interagir no Facebook. Com as fotografias de caminhadas antes realizadas, senti necessidade de as publicar acompanhadas de poemas. Mantenho esse hábito com menos constância.

  Sempre sonhou publicar um livro?

Ao guardar na gaveta o que ia escrevendo e, revendo de vez em quando o que tinha, admitia que um dia…
No Facebook, de alguns os comentários recebidos, vinha o desafio de:
-Quando é que publicas um livro? Coligi os poemas por temas e nasceu o primeiro.

 

  Qual é a sensação que tem ao ver, agora, o seu livro nas mãos?

Nunca imaginei que o desafio literário atingisse este desfecho, ainda me belisco. Agrada-me o resultado e a minha dúvida agora é se vai agradar a quem o ler. Criei uma equação de complexidade elevada da qual não extraio facilmente a incógnita.

  Tem algum projecto a ser desenvolvido, actualmente? Pensa publicar mais algum livro? Continua a sentir vontade de escrever?

Tenho e sim, continuo a escrever, só não publico porque o hemisfério esquerdo do cérebro me diz:
- Aguarda o resultado deste primeiro livro. 

  Fale-nos um pouco sobre o seu livro.

Não tenho animais de estimação nem de criação, mas por os ter tido, olho-os como fazendo parte da nossa vida e motivo bastante para “quase” os humanizar. É indiscutível que os animais de companhia nos dias de hoje, permitem uma socialização maior entre desconhecidos e achei que valia a pena pôr pensamentos e palavras na boca de alguns como se fosse este, o seu verdadeiro papel na sociedade.

  Existe alguma parte do livro, em particular, que goste mais. Porquê?

Nos poemas: Tourada pela cabeça do touro, que termina em abraço de amizade; Viscosidade, pelo final feliz; Novas espécies marinhas, na sequência do aquecimento global e Novas Orientações de Deus, por os homens deixarem de ser confiáveis.

  Indique as razões pelas quais aconselharia as pessoas a ler o seu livro? O que acha mais apelativo no seu livro?

Os animais comportarem-se como pessoas e nalguns poemas só eles é que possuem discernimento e voz. É a oportunidade de assistir à ausência de reflexos condicionados e assistir à libertação da sua própria consciência. A introspeção surge nos animais como forma de julgar o seu lugar neste mundo de humanos.

  Qual é o seu estilo de escrita ou que tipo de mensagem gosta de passar no que escreve?

Somos seres complexos e o que nos surge no momento de escrever não é premeditado, flui para o teclado o que a mente inconscientemente constrói. É um jogo, da qual não se sabe regras, nem o desfecho, mas sei que deste modo encontrei o caminho. Nesta descoberta, sinto necessidade de o partilhar com os outros.

  Qual o papel das redes sociais na vida e na divulgação da obra de um autor? E na sua?

As redes sociais sendo um dos meios de comunicação das gerações ativas, são imprescindíveis; mas a proliferação de comentadores e de quem bota faladura, leva-nos a ser muito atentos. No meu caso, as boas opiniões dos poemas publicados, alimentaram-me o ego, culminando na publicação deste livro.

  Gosta de ler? Que tipo de leitor é que é?

Fui leitor compulsivo, só largava um livro depois de chegar ao fim. Agora, estou moderado e em casa, tenho livros cuja leitura inicio e são postos de lado, para voltar mais tarde. Quando termino, ofereço mesmo os que tenha gostado, exceto os de poesia, que continuo a guardar. Para viagens mesmo de fim de semana, carrego livros para ler, para além do iPad que armazena ebooks.  


Pode acompanhar o autor em:

https://www.facebook.com/jose.m.amado/
www.linkedin.com/in/josé-amado-escritor
https://www.instagram.com/zeamado/




ANIMAIS, novo sopro de vida – poemas- ; José Amado

PVP: 12,00€
138 páginas, capa mole; Tecto de Nuvens, 2022

Os animais estão por todo o lado, na profundidade dos seus pensamentos são postos a falar de si e do que os rodeia, das tarefas, dos prazeres e dos antídotos que injetam nos males dos seus donos. São inseparáveis companhias dos que estão sós, nos seus eternos monólogos iniciados em longas noites da vida.



Disponível nas principais lojas online nacionais e internacionais.

Pode fazer a sua encomenda ou pedir informações complementares enviando email para loja@tecto-de-nuvens.pt

Novo livro: "ANIMAIS, novo sopro de vida - poemas - ", de José Amado


A partir de hoje este livro está disponível um pouco por todo o lado, com destaque para as principais lojas online nacionais e internacionais.
Não perca, ainda esta semana, a entrevista ao autor. Fique atento!




ANIMAIS, novo sopro de vida – poemas- ; José Amado

PVP: 12,00€
138 páginas, capa mole; Tecto de Nuvens, 2022

Os animais estão por todo o lado, na profundidade dos seus pensamentos são postos a falar de si e do que os rodeia, das tarefas, dos prazeres e dos antídotos que injetam nos males dos seus donos. São inseparáveis companhias dos que estão sós, nos seus eternos monólogos iniciados em longas noites da vida.

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Vaidosicezinhas IX

 Não é nenhuma mentira que temos muita vaidade dos nossos autores e das suas obras, mas a modéstia leva-os a não partilharem tudo connosco, mas quando o fazem, nós divulgamos...
E então quando a nossa autora Maria Saraiva de Menezes resolve sobressaltar as populações com o aviso da morte da Mariana, bom, há que investigar. E foi isso mesmo que fez a Time Out Lisboa no seu recentíssimo número da Primavera 2022.
E para quem não sabe quem é a Mariana é boa ocasião para lerem o livro "História numa Garrafa" ou, pelo menos visitarem a Maria em  
https://www.facebook.com/pages/História-numa-garrafa

E muita atenção à Maria Saraiva de Menezes que neste mês de Abril vai andar muito por aqui (e em boa companhia).
Por agora, fica a notícia:





Quanto ao livro, vende-se em versão papel e em versão ePub em qualquer das principais lojas online nacionais e internacionais.
Pode ler alguns excertos aqui